Lupa do Bem entrevista Cidinha Moura, da FASE: “É preciso uma ação integrada para erradicar a fome”
A agrônoma e ativista Cidinha Moura é coordenadora da FASE em Mato Grosso; ONG surgiu para fortalecer o associativismo e combater a fome
A insegurança alimentar severa caiu 85% no Brasil, segundo o último Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024). Em números absolutos, isso significa que 14,7 milhões de pessoas deixaram essa condição no último ano, indicando que o país está a um passo de sair do Mapa da Fome novamente. Para entender o que está em jogo no combate à fome e o que ainda precisa ser feito para garantir o direito à alimentação, conversamos com a agrônoma e ativista Cidinha Moura, coordenadora da FASE (Fundo Mato-Grossense de Apoio à Cultura da Semente) – Mato Grosso.
Fundada em 1961 pelo padre Leising, a ONG é considerada a mais antiga do Brasil. Com sede no Rio de Janeiro e unidades regionais em seis estados, atua nas causas de direito à cidade, justiça ambiental, soberania alimentar e mulheres. Em comum, todas essas causas se conectam com seu objetivo inicial, que é promover a segurança alimentar das populações no campo e na cidade.
Lupa do Bem: Você comentou que a FASE surgiu do trabalho que o padre Leising tinha com as comunidades carentes, de observar o que elas precisavam. Passados mais de 60 anos de atuação, qual a lição que fica dessa experiência?
Cidinha Moura: Nós da FASE sempre prezamos a discussão com as populações com quem atuamos, perguntamos suas demandas e fazemos o planejamento participativo. E desde que nasceu, foi muito com essa preocupação com a vida das pessoas, tanto da cidade como do campo, com o foco na questão da fome. A FASE também escuta os parceiros, porque nós não trabalhamos sozinhos, estamos sempre junto com outras organizações. Fizemos muita campanha com o Betinho no passado. E ao longo desse tempo, às vezes mudamos nossos programas, mas essa preocupação com as comunidades carentes continua, de combate à fome, de buscar, junto com outras organizações, amenizar essa questão.
Então muitas vezes nos perguntam porque hoje nós trabalhamos com produção agroecológica, como se tivéssemos apenas uma preocupação de ter o alimento sem veneno. Esse é aquele momento que paramos e conversamos: para quem é esse alimento? Ao mesmo tempo, também precisamos denunciar quem está levando a fome para as comunidades. Por exemplo, aqui no caso do Mato Grosso, muitos lugares sofrem com a fome por causa de problemas gerados pelo agronegócio. Na Amazônia, com a mineração. Mesmo lá na Bahia e no Espírito Santo, precisamos combater o deserto verde, que é aquela coisa de tirar as pessoas das comunidades para o plantio de eucalipto e outras espécies para produção de papel.
LB: Mas além dessa atuação de base, vemos que a FASE também faz muita incidência política, tentando mobilizar as instâncias de poder…
Sim, com certeza! Quando a Maria Emília Lisboa Pacheco vai para o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar], por exemplo, essa foi uma decisão para levar nossa contribuição, falar sobre a questão das populações tradicionais, da importância da defesa dos territórios para a permanência das comunidades, porque não está havendo demarcação das terras indígenas, nem titulação das terras quilombolas…
Levar também a discussão da agroecologia, da violência contra as mulheres, pois como sempre dizemos, não adianta ter produção de alimentos saudáveis se ainda tem o sangue das mulheres. Isso é muito forte, mas precisa ser dito, porque sabemos que a mulher em situação de violência, muitas vezes acaba saindo da zona rural, vai para a cidade e fica em situação de insegurança alimentar.
Então, a nível nacional, nós estamos no Consea, que é um conselho consultivo, ou seja, que leva as recomendações para a presidência da república. Nós também estamos no Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e na Articulação Nacional de Agroecologia. Participamos ativamente desses espaços de discussão sobre políticas que contribuem para diminuir a fome no Brasil.
Falamos sobre a importância da volta das políticas com orçamento, pensando políticas estruturantes, e também políticas que vão fortalecer lá na base, os agricultores que estão no campo, na associação, mesmo os extrativistas, para que isso vá melhorar a alimentação, tanto para eles consumirem como para comercializarem. A nossa ação tem sido mais nesse sentido.
LB: O que é preciso para combater a fome? Em 2014, por exemplo, o Brasil saiu pela primeira vez do Mapa da Fome desde que foi instituído. Mas vimos que a pandemia, aliada às medidas adotadas no antigo governo Bolsonaro, empurraram 33 milhões de brasileiros para a situação de fome outra vez, fazendo com que o país voltasse novamente ao Mapa…
Após esses dois anos de governo Lula, nós começamos a observar que, onde tinha chegado o Programa de Aquisição de Alimento (PAA), onde chegaram os projetos das cisternas para ter água, onde teve assessoria técnica, como foi o caso do Nordeste, que teve crédito na política pública, a fome diminuiu. E nós aqui na FASE fazemos muito essa assessoria para que as organizações, como associações e cooperativas, possam acessar essas políticas. Então vimos de perto que, onde esse recurso dos programas das políticas públicas chega, há de fato uma melhoria na qualidade de vida dessas pessoas. Elas começam a ter acesso à renda.
Mas é importante lembrar que, para que isso aconteça, existe uma ação de todos os ministérios de forma conjunta. Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde e Ministério da Educação fizeram uma ação integrada. Em resumo, há fome quando faltam políticas públicas com orçamento, que garantam assessoria técnica, infraestrutura, logística. E quando se trata de assessoria, precisa ser no campo da educação popular, de saber chegar até essas comunidades, de conquistar a confiança dessas pessoas para formular projetos que realmente sejam pensados por elas. É o que elas querem comercializar, o que elas têm condições de produzir, e não o que os técnicos acham que é o melhor para elas. Enfim, é preciso respeitar o conhecimento delas.
E claro, é preciso bons gestores municipais, porque ainda há muitos gestores que têm preconceito contra os agricultores, que não reconhecem os seus direitos para acessar essas políticas. Tratam os agricultores como coitadinhos, aí chega na época da eleição, resolvem ajudar pontualmente, não incluem os agricultores em políticas visando uma continuidade.
Outro ponto é a questão da educação. Muitas escolas rurais estão fechando e os filhos dos agricultores não querem mais continuar no campo. Como a educação não é voltada para o campo, vem aquele professor que defende que os jovens precisam estudar para mudar de vida, sair do campo, o famoso ‘ser alguém na vida’. Os jovens precisam estudar sim, mas para permanecer no campo, para poder realizar seus projetos ali mesmo, serem atendidos nas suas reivindicações localmente. Então, essa questão da educação tira a juventude do campo, e sem essa mão de obra, a produção de alimentos também cai. Como resultado, o preço dos alimentos nas cidades aumenta. E hoje a maioria da população está nas cidades. Por esses motivos, ainda vemos muitas famílias em situação de fome, mesmo tendo acesso ao Bolsa Família.
LB: O presidente Lula acabou de lançar no G20 a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Apesar disso, eu noto que o combate à fome já não tem mais mobilizado a opinião pública, que agora está focada na questão das mudanças climáticas, por exemplo. Mas sabemos que tem muita gente com fome, inclusive muitos agricultores. Por que a fome deixou de sensibilizar a sociedade?
Exatamente. Às vezes, vamos para as comunidades rurais e vemos que os aposentados são responsáveis pela alimentação de toda família. Eles compram os alimentos com o dinheiro da aposentadoria, muitas vezes compram comida até para os filhos e netos que moram na cidade e que estão desempregados, ou então não recebem o suficiente para adquirir os alimentos. E aí acabam comprando muitos ultraprocessados, porque são mais baratos.
Por isso sempre falamos sobre a importância dos programas virarem políticas públicas com continuidade. Porque quando muda de governo, os deputados não aprovam o orçamento, aí o programa está lá, mas não tem dinheiro. E hoje, quando falamos em fome no congresso, dizem que é coisa da esquerda.
Aliás, em vários espaços, quando falamos em segurança alimentar, escuto o pessoal dizer ‘Ah, lá vem vocês com esse papo’. Ou seja, não querem discutir políticas que vão acabar com a fome porque é do interesse que as pessoas continuem dependendo de cesta básica, que será doada em momentos bem específicos, como durante as eleições, por exemplo.
LB: A própria questão da degradação ambiental e das mudanças climáticas, de alguma forma, também estão conectadas com a fome… Vivenciamos no Brasil eventos climáticos extremos este ano. Primeiro, com as chuvas no Rio Grande do Sul, depois com a seca e as queimadas que ocorreram em grande parte do país alguns meses atrás…
Sim! Discutimos isso recentemente aqui em Cuiabá, por conta das eleições. O que fazer em um estado onde estamos percebendo cada dia mais as consequências do desmatamento? Os rios estão secando, as temperaturas por aqui já são altas, mas às vezes estão cinco graus acima da média, tornando inóspito. A questão das mudanças climáticas está trazendo muita dificuldade para a produção de alimentos mesmo nas terras indígenas e quilombolas, pois sem água não tem como produzir. Os indígenas de alguns territórios, por exemplo, deveriam estar protegidos com os rios, com a floresta, mas as nascentes estão nas lavouras de soja, de algodão, os agrotóxicos envenenam os rios e as pessoas. Há pulverização aérea…
Agora, com os incêndios, não sobrou semente para fazer o próximo plantio, queimou tudo. Tudo isso vai levar à diminuição da produção de alimentos. Aí entra a importância de garantir um bom orçamento para as políticas públicas de incentivo à produção, para fazer hortas e roçados. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo, precisa ter mais orçamento de forma que inclua todas as famílias que queiram participar e que estão dentro dos critérios, não selecionar apenas algumas.
LB: Para terminar, qual o impacto da contribuição da FASE para promover a soberania alimentar no Brasil?
Nós sempre falamos que nosso trabalho se faz com um pé no território e outro nos espaços públicos e em fóruns para fazer a discussão. Porque não tem como ir para um conselho sem saber o que está acontecendo na base. Ir para uma discussão na CONAREDD [Comissão Nacional para REDD+] sem saber quem está sofrendo com a crise climática. Então, se eu vou para uma discussão sobre mulheres no grupo de trabalho da ANA [Associação Nacional de Agroecologia], por exemplo, quando é possível, levamos as agricultoras para que elas possam falar por si próprias. E nós também, quando vamos participar de um espaço de discussão, sempre levamos o que ouvimos dos territórios para que, quando formos discutir alguma estratégia, ela vá mesmo de encontro ao que está sendo demandado no território.
No Consea, por exemplo, quando discutimos sobre a composição da nova cesta básica, levamos a importância de ter um orçamento para o PAA. Também fizemos a denúncia de que estavam chegando ultraprocessados para os Yanomami, a recomendação foi feita e logo depois os próprios indígenas disseram que tinha melhorado. Esse é um espaço importantíssimo, porque o presidente ouve o conselho, a secretaria geral e os ministros dão atenção para o conselho.
Quer apoiar essa causa?
A FASE atua em seis estados: Pará, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso e Rio de Janeiro. A ONG opera por meio de editais, cooperação internacional e doações.
Além disso, possui dois fundos que financiam ações pelo país: o Fundo DEMA, gestado na Amazônia, e o Fundo SAAP, no Rio de Janeiro.
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