Inspirado nas clínicas públicas de Freud, Favela de Psicanálise populariza formação terapêutica em distrito de São Paulo

Projeto promove seminários e aprimoramentos clínicos com supervisão e atendimento familiar.

17.05.23

Entender como o inconsciente atua na nossa mente pode tratar dores e sofrimentos individuais. A partir dessa premissa, o projeto Favela de Psicanálise busca popularizar o acesso a esse debate e ao atendimento clínico em São Miguel Paulista, zona leste da cidade de São Paulo. Inspirado na ideia das clínicas públicas de Freud, o projeto articula e mobiliza profissionais e pacientes em torno de seminários e aprimoramentos clínicos no território. 

O objetivo é oferecer uma formação de base popular em psicanálise, que seja capaz de romper com a noção elitizada que foi criada em torno do tratamento da mente no Brasil. O projeto, que começou em 2022, está em fase inicial. A ideia partiu de Raul Araujo, psicólogo com formação complementar em educação, estudos de paz e filosofia:

“Eu estudei psicologia, sempre tive uma prática com crianças e adolescentes em situação de rua, com homens e mulheres encarcerados, e sentia falta de um lugar para discutir e pensar a psicanálise fora da bolha da riqueza”, conta. 

Assim, depois de trabalhar em vários lugares do Brasil e do mundo, atuando com supervisão institucional, acolhimento e formações para CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), Raul convidou colegas de profissão para elaborar e implementar a formação. Através de ciclos de debates mensais e contando com convidados que são referências nos temas, o grupo e a discussão vão tomando força. 

Bela Gil, Raul Araújo e Adriana Salai debatem sobre alimentação e trabalho reprodutivo. Imagem: reprodução Favela de Psicanálise.

As clínicas públicas de Freud

O médico Sigmund Freud, considerado o criador da psicanálise, foi quem identificou que o inconsciente poderia ajudar a explicar o comportamento humano. Para Freud, a mente opera através de decisões conscientes e inconscientes e, através de análise terapêutica, é possível entender os motivos inconscientes que levam o indivíduo a agir de determinada maneira. 

A psicanálise, porém, não deve ser restrita a uma construção clínica solitária. Segundo Freud, o cuidado com a saúde mental deve ser assegurado como aspecto fundamental da cidadania. Seu ativismo surgiu em um momento de efervescência política progressista em Viena, na Áustria, na década de 1920. Nesse contexto, implementou as clínicas gratuitas de psicanálise. 

Sua proposta estava diretamente associada à defesa da emancipação e da responsabilidade social, com o direito à assistência de saúde acima de tudo. A terapia ativa, dizia, poderia contribuir com o fortalecimento da democracia. Os centros ambulatoriais, ou a aplicação em massa da terapia, ajudariam a restaurar a individualidade e a participação social em um período marcado pelo fim da primeira guerra mundial. 

De volta a São Miguel Paulista, em São Paulo, o projeto Favela de Psicanálise inicia suas atividades com base justamente no livro “As clínicas públicas de Freud: Psicanálise e Justiça Social”, de Elisabeth Danto. O livro traz as circunstâncias históricas e pessoais que levaram Freud a defender a terapia pública no período entre guerras na Europa. Ao mesmo tempo, mostra como o fascismo acabou com a ideia da psicanálise como um direito social que deveria ser amplamente acessível à população.  

O Ministro da Justiça Flávio Dino e a Secretária de Segurança Pública Tamires Sampaio participam de roda de conversa organizada pelo Favela de Psicanálise. Imagem: reprodução.

Movimento em construção

Assim como nas clínicas públicas de Freud, o projeto Favela de Psicanálise tem como objetivo oferecer uma formação plural e democrática. Trata-se de um espaço em construção, mas com uma ideia bem estabelecida, diz Raul Araújo. “Queremos pensar a psicanálise e a clínica fora dos lugares tradicionais onde aparecem”, afirma.

Perguntas sobre como lidar com a questão da fome, do desterro, do deslocamento e da violência apontam um caminho de como esse espaço está sendo construído. Não é uma formação individual e institucionalizada, avisa Raul, mas um espaço de formação coletiva para o analista da classe trabalhadora atender a classe trabalhadora. 

Dessa forma, os ciclos de debates visam promover uma reflexão sobre aspectos da psicanálise a partir das demandas populares. Segundo Raul, “quando o grupo está discutindo um tema, é possível se indignar com situações e a partir da indignação construir um campo de afirmação de direitos. Isso tem muito a ver com a pedagogia de Paulo Freire, a gente tem um pouco essa pegada também”, diz. 

Já estiveram por lá convidados como o psicanalista Douglas Rodrigues Barros e o sociólogo Deivison Nkosi, que abordaram o tema psicanálise e racismo e a filósofa Olgária Matos, que falou sobre migração, exílio e subjetividade. Também participaram de rodas de conversa o Ministro da Justiça Flávio Dino e a Secretária do Programa Nacional de Segurança Pública, Tamires Sampaio.

Os encontros de psicanálise

Participam dos encontros cerca de 20 pessoas usuais, mas há eventos em que esse número aumenta consideravelmente, dependendo do tema e do convidado. Os participantes possuem profissões variadas: há psicólogos do CAPS, psicólogos do Fórum, servidores da justiça, da assistência social, etc. E vêm de diferentes regiões da cidade: Grajaú, Cidade Ademar, Parelheiros, São Miguel Paulista, Itaquera, Guaianazes, União de Vila Nova e outras, incluindo cidades próximas como Campinas. 

Em geral, comparecem as pessoas que estão realmente interessadas, já que todas as atividades são presenciais, conta Raul. Os encontros são feitos aos sábados pela manhã. Espera-se uma contribuição consciente de cada participante, que é usada para oferecer o café e manter a equipe de filmagem, formada por jovens da própria comunidade. 

Os temas dos seminários variam e atendem às demandas colocadas pelos próprios participantes. “Um tema que surgiu durante os encontros, por exemplo, foi a questão das drogas, por conta do surto de k2 na comunidade, também conhecida como maconha sintética. Nós discutimos essa questão a partir da perspectiva da redução de danos, da psicanálise e do direito”, lembra Raul. 

Semana passada, o debate foi sobre alimentação e trabalho reprodutivo, e contou com a presença da nutricionista e apresentadora Bela Gil e da pesquisadora e ativista Adriana Salai, uma das criadoras da ação de solidariedade “Quebrada Alimentada”. O seminário abordou a relação entre fome, comida e o trabalho ligado ao cuidado, exercido sobretudo pelas mulheres. O tema também foi sugerido dentro do grupo. 

Qualquer pessoa pode participar dos ciclos de debate. Já para o aprimoramento clínico, é preciso ter formação em psicologia e já ter atendido pelo menos uma vez durante a trajetória profissional. As psicanalistas Maria Rita Kehl, Regina Fabrinni, Flávio Veríssimo, entre outros,  fazem a supervisão semanal do aprimoramento clínico. 

Favela de Psicanálise
Imagem: reprodução.

Centro e periferia 

“O sociólogo Jessé de Souza utiliza um termo muito interessante, que é elite do atraso. A elite no Brasil não lidera nenhum processo, não participa da competição da burguesia mundial, não propõe nada de novo, apenas se protege”, explica Raul sobre as razões que dificultam o acesso das populações mais pobres aos tratamentos de psicanálise.   

O projeto Favela de Psicanálise é justamente uma tentativa de inserir uma abordagem até então restrita a uma pequena parcela privilegiada da população no cotidiano da maioria das pessoas. O próprio nome do projeto traz uma reflexão: 

Favela é uma planta da Caatinga. E em Canudos havia um morro coberto por essa planta, chamado morro da favela. Quando houve a guerra de Canudos, o governo federal contratou antigos escravos que moravam no Rio de Janeiro para lutar junto com o exército no que seria a última batalha. Na volta, foi prometido a eles que teriam um lugar para morar como recompensa. Eles lutaram e massacram todo mundo. Mas, quando voltaram, não receberam moradia. Essa população foi morar no Morro da Providência, onde colocaram o apelido de Morro da Favela.

“O projeto tem essa conexão com a noção de deslocamento, migração e violência, mas também de um lugar de reconhecimento, apropriação de território e potência”, afirma Raul. Para ele, pensar os espaços na cidade em termos de centro e periferia é um desafio, já que seus limites estão em constante transformação. 

“São Paulo já teve o centro antigo, depois foi a região da Av. Paulista, agora o centro econômico é a Av. Berrini, a Av. Faria Lima foi se deslocando como se fosse se protegendo dos pobres, então é complicado chamar tudo aquilo que não é centro de periferia, porque os bairros são muito distintos, possuem movimentos, circulação de pessoas, produção de cultura muito diferente”, diz. 

Favela de Psicanálise
Favela de Psicanálise e Mulheres do Gau. Imagem: reprodução.

A potência da informação

A psicanálise trabalha com a implicação do sujeito. Isso significa que o indivíduo se relaciona com a sociedade a partir de um posicionamento específico. Por exemplo, o Brasil é uma sociedade de formação escravocrata, então a maneira como cada pessoa vive no país é muito influenciada não apenas por fatores sociais e econômicos que são resultado dessa história, mas também por fatores subjetivos, ou seja, como as pessoas veem os outros e se enxergam dentro desse sistema. 

“Se um homem tem 60 anos e quer ser médico, por exemplo, e ele é pobre e negro, você sabe que ele terá inúmeras dificuldades para atingir seu objetivo, então o bom psicanalista não vai dizer que tudo depende dele, mas vai ajudá-lo a descobrir caminhos para atingir esses objetivos, essa é a escuta”, explica Raul. 

Assim, entender a forma como o inconsciente desse homem age é importante para que ele não desista antes mesmo de começar a tentar. Questões semelhantes são debatidas em grupo no Favela de Psicanálise. Ao que Raul questiona: é possível alguém fazer análise com fome? “Mesmo nos dias de hoje, que são super acelerados, dá tempo para parar e refletir? Não podemos partir do princípio de que todo mundo tem horário para análise”, diz, mostrando como o grupo está pensando essas questões e inventando outras formas de fazer psicanálise. 

“Qual o dispositivo de escuta, de trabalho, de intervenção de campo que estamos constituindo? Não sei se tudo isso ainda pode ser chamado de psicanálise, mas acho que é. E é essa conversa que nós estamos tendo…”, finaliza. 

Quer apoiar essa causa?

Todo trabalho envolvido no Favela de Psicanálise tem sido feito de forma voluntária. O projeto também está montando uma biblioteca através de doações de livros. 

Para mais informações, entre em contato pelo e-mail: secretaria@faveladepsicanalise.org.  

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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