Animais exóticos e silvestres encontram dignidade e respeito em santuário ecológico, no interior de São Paulo
Atuando desde 1991, Rancho dos Gnomos é pioneiro no acolhimento de grandes felinos e ursos no Brasil.
O Santuário Rancho dos Gnomos tem uma história de luta marcada por acasos, conscientização e comprometimento espiritual com a vida dos animais. Esses acasos, na verdade, se revelaram ao longo do tempo como uma vocação de um casal que tinha tudo para trilhar um plano de vida definido, mas que viu seus caminhos se transformarem através do contato profundo com o solo, as plantas e os animais.
O amor, aliás, está presente desde o início dessa história. Silvia Pompeu, fundadora do Rancho dos Gnomos, conta que sua atuação pela defesa dos animais começou após se casar. Ela estava morando fora do Brasil quando retornou para oficializar a união com seu companheiro, Marcos Pompeu, com quem namorava há dez anos. A ideia era retornar para o exterior depois do casamento, mas sem planejar, acabou se estabelecendo em um antigo sítio da família, em Cotia, na região metropolitana de São Paulo.
O sítio ocupava uma área de 36 mil metros quadrados. Apesar de ser da família, Silvia raramente visitava o local. A última vez que esteve por lá foi para guardar os móveis e outros pertences do antigo apartamento, que deixaria no sítio para poder retornar ao exterior. Mas o inusitado aconteceu: “ali era literalmente um bota fora da família, todos amigos e familiares guardavam objetos que não usavam mais no sítio, nós também fomos levar nossas tralhas, mas acabamos ficando juntos com elas!”, diverte-se Silvia.
Respeito aos animais
A lembrança dos animais que eram criados para serem usados na alimentação manteve Silvia longe do sítio da família durante anos. “Eu era pequena, tinha uns 11 anos e toda vez que meus pais iam para o sítio e matavam uma galinha ou um porco, saía correndo com meu irmão para o bosque, não conseguia identificar, mas sentia um desconforto terrível”, conta.
Hoje, seu irmão Fernando também trabalha no santuário acolhendo e protegendo os animais. O santuário foi criado pouco tempo depois, após Silvia e Marcos estabelecerem-se no sítio da família, em 1991. Eles ainda não sabiam, mas a mudança de forma inesperada reservava um compromisso para a vida inteira. “O sítio estava com nossa família há pelo menos 25 anos, quase nunca ia lá, não tinha nenhuma afinidade com a terra, nem com os insetos e as plantas, levava uma vida muito urbana”, relembra.
Nesse processo, ela e seu marido também passaram a se incomodar com os repetidos casos de animais atropelados, machucados e abandonados na estrada entre Cotia e São Paulo. A chegada da cabra Talismã no sítio durante o período, em especial, foi definitiva para a mudança de valores do casal. Talismã ia ter um filhote e eles venderam um carro para montar um capril. Ali começava uma relação de respeito e devoção pela vida de todos os seres do planeta Terra.
“Sem perceber, nós estávamos abertos para essa novidade de vida, e isso foi um diferencial, porque logo depois nós participamos do Congresso da Arca Brasil e lá tivemos o incrível despertar de consciência”, diz Silvia. O congresso debateu, durante três dias, o sofrimento dos animais e ao final ela decidiu aliar-se à causa depois de um despertar sofrido e doloroso, conta Silvia.
Por um mundo com mais harmonia
Durante sua trajetória, Silvia enfrentou alguns dilemas. Ela costuma dizer que vivia feliz e alienada, cuidando dos próprios interesses. E que não via saída para o problema global da crueldade contra os animais: “esse foi um sofrimento muito grande, a impotência de achar que a gente realmente não ia conseguir”, recorda-se.
Mas com ajuda de seu pai, Nelson Andrade, que doou as terras e deu todo suporte emocional, e apoiando-se na espiritualidade, transformou toda sua indignação em força. Assim, começaram o ativismo no início dos anos 1990, em um momento de poucas leis de proteção animal e sem as facilidades da internet. Segundo Silvia, naquela época não havia ativismo declarado no Brasil. Mas ela percebeu que todas suas ações, por menor que fossem, eram importantes, pois impactariam a vida daqueles que estavam sofrendo.
“Eu parei de olhar a monstruosidade da crueldade planetária, e comecei a olhar ao meu redor, o trabalho era braçal, mas tinha também toda a questão da papelada”, diz Silvia, que precisou obter uma série de documentos, como licenças, homologações e registros junto aos órgãos competentes Ibama, Consema e Conama, entre outros, para acolher animais exóticos e silvestres.
Santuário ecológico
O primeiro animal exótico que chegou no rancho foi uma leoa, Tacha, a pedido do Ibama. “Aí começou realmente o rancho e nós fomos entendendo a necessidade de ter o ativismo, a espiritualidade e a papelada”, diz Silvia. Para ela, o ativismo sempre caminha junto com a espiritualidade. Além disso, é importante ajudar de alguma forma a melhorar o ser humano para que os animais fiquem bem.
Com o passar dos anos, porém, a área onde ficava o sítio em Cotia foi se urbanizando e deixou de ser zona rural. O excesso de barulho à noite, somado aos constantes conflitos policiais nos arredores, estava interferindo na segurança do santuário. Os animais estavam perdendo qualidade de vida, explica Silvia.
“O santuário é um lugar realmente sagrado para os animais. Eles são resgatados de situações de maus tratos e negligência, de exploração, abuso e violência. E quando tinha festa nos arredores, muitas vezes com som alto até 10 horas da manhã, eles não conseguiam mais dormir”, lembra.
A busca por um novo espaço levou cerca de sete anos. Eles encontraram uma área em Joanópolis, na Serra da Mantiqueira, mas não tinham como comprar o terreno. Então fizeram uma campanha de arrecadação pela Kickante, em 2015. A campanha foi um sucesso, com recorde de doações na plataforma, trazendo ainda mais visibilidade para o trabalho feito no rancho.
“Isso foi uma surpresa maravilhosa, porque a gente trabalha tanto, tudo tão sofrido e árduo, que é resgatar e cuidar dessas vítimas, mas não tínhamos ideia do alcance disso. E com a campanha tivemos esse retorno, a mídia inteira contribuiu, o rancho ficou realmente conhecido”, conta Silvia.
Abandono e maus-tratos
O santuário já tinha acolhido mais de 25 mil animais quando se mudou de Cotia para Joanópolis, em 2016. O novo espaço ocupa uma área de 170 mil metros quadrados. A visibilidade recebida pela mídia, ao mesmo tempo que contribuiu para divulgar a importância da conscientização sobre a crueldade com os animais, aumentou as denúncias de abandono e maus-tratos e o rancho passou a acolher cada vez mais.
Este ano, o Rancho dos Gnomos completa 32 anos de atuação na proteção de animais exóticos e silvestres. Não existem dados oficiais sobre animais abandonados no Brasil, mas segundo estimativas de Organizações Não Governamentais, cães e gatos lideram o número de abandonos no país, seguido de burros e jumentos.
Da mesma forma, não existem dados sobre o abandono de animais exóticos e silvestres. Contudo, a partir da experiência do Rancho dos Gnomos, é possível prever que a principal fonte de abandono de animais silvestres deve-se ao tráfico de animais. A proibição de uso de animais em circo a partir dos anos 2.000 também gerou abandono em massa de animais exóticos, velhos e doentes: leões, tigres, chimpanzés, ursos, entre outros.
O abandono de animais é considerado crime no Brasil desde 1998. Não há ainda, porém, uma legislação federal que proíba o uso de animais em apresentações circenses. Assim, apenas 12 dos 26 estados brasileiros regulamentaram a questão por meio de leis municipais e estaduais. Somente em 2023, com o início do novo governo federal, pela primeira vez na história do país foi criado o Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais no Brasil, através do Decreto no. 11.349.
Educação Ambiental e Veganismo
Para combater o abuso e a violência contra os animais exóticos e silvestres, o Rancho dos Gnomos vem apostando na educação ambiental. Durante dez anos, enquanto o rancho ainda estava em Cotia, o casal realizou intenso trabalho de conscientização sobre a exploração de animais em circos, aquários e zoológicos. Silvia visitou diversas cidades pelo Brasil e estima que tenha impactado pelo menos 30 mil crianças através de palestras e outras atividades pedagógicas.
A difusão de informações é central para a conscientização: os animais ficam encarcerados; dentes e garras são arrancados de seus corpos; queimaduras são práticas comuns durante a doma. As prisões, mutilações e as domas precisam, portanto, ser necessariamente extintas das relações entre humanos e animais por uma sociedade com mais harmonia e respeito. O uso de animais na alimentação também deve ser repensado, diz Silvia.
O veganismo, lembra, vai além das questões alimentares e envolve respeito e dignidade aos animais. “Não adianta falar vamos preservar a onça pintada, que está ameaçada, se o habitat dela está sendo destruído para criar boi”, alerta. Para ela, muita gente diz que sente amor aos animais porque adora cachorros e gatos, mas não estende esse amor às galinhas, aos porcos, bois, coelhos, cabras, peixes, etc.
“É um amor fragmentado, então, é uma questão de reflexão mesmo. Nós entendemos que não podemos falar de amor ou respeito aos direitos dos animais, se for só para esse ou aquele animal”, afirma. A Lei no. 9.605/98, que define os crimes contra os animais, por exemplo, criminaliza maus tratos, abandono e morte de animais domésticos, domesticados, silvestres e exóticos.
Porém, não há objeções contra a criação de animais para serem usados na alimentação e vestuário ou mesmo em experimentos científicos. “Ninguém quer sujar a mão, pegar o facão e degolar um animal. Mas até chegar no mercado, tem um caminho, um rastro de violência que as pessoas preferem não saber”, lembra Silvia.
Amiga Ursa
A cantora Rita Lee, que faleceu recentemente, esteve no rancho anos atrás. Ela escreveu um livro chamado Amiga Ursa, sobre Rowena, a primeira ursa que o casal resgatou do Piauí. Rowena foi considerada a ursa mais triste do mundo. Ela estava em uma situação deplorável quando foi encontrada no zoológico do Piauí, uma região tradicionalmente quente do país: tinha sarna, pulga, carrapato, fungos e infestação de verminoses. Mas depois que foi para o rancho, em dez meses transformou-se em uma linda ursa.
Rita Lee ficou sabendo dessa história e fez um livro infantil sobre animais em circo, para a conscientização das crianças. E queria conhecer Rowena pessoalmente. “Rita Lee ficou muito impressionada, disse que foi um dos dias mais emocionantes da vida dela”, recorda Silvia. Rowena, contudo, já não vive mais. Certo dia ela teve uma convulsão e faleceu. O motivo: um tumor ovariano de cinco quilos que foi descoberto somente após a sua morte.
No Brasil, não existe urso nativo. Todos os ursos do país foram importados por zoológicos e circos. E os ursos tendem a ser abandonados depois que ficam velhos, por conta de problemas de saúde. Mizar, irmã de Rowena, por exemplo, também está sob cuidados de Silvia e Marcos Pompeu. Ela foi explorada durante 20 anos por circos e depois ficou mais 10 anos presa em um zoológico no Nordeste.
Não apenas os ursos, mas todos os animais que são acolhidos no santuário chegam com muitas sequelas, alerta Silvia. O trabalho do rancho, portanto, é intenso. “Nós acolhemos no rancho o que sobra desses animais, tentamos resgatar a dignidade perdida deles, fazemos um trabalho de resgate físico e de restauração da paz desses animais, da alma deles que foi arrancada”, finaliza.
Quer apoiar essa causa?
O rancho vem se mantendo através de um programa de colaboradores. Existem os colaboradores mensais e os colaboradores pontuais. O casal Silvia e Marcos Pompeu também usa recursos próprios no rancho. Além disso, existem algumas parcerias que contribuem com o bom trabalho do local: a Porto Seguro faz o transporte gratuito dos animais resgatados há mais de 15 anos. A farmácia de manipulação O Alquimista auxilia na parte de homeopatia e florais há 20 anos. Há ainda toda uma rede de voluntários atuando em conjunto, como veterinários, clínicas especializadas, laboratórios etc.
As doações e parcerias podem ser feitas através do site do Rancho dos Gnomos.
Maiores informações, entre em contato por e-mail: contato@ranchodosgnomos.org.br