Representatividade negra e parentalidade é tema central do Coletivo Pais Pretos Presentes
Coletivo surgiu para apoiar pais pretos e logo tornou-se referência no debate sobre letramento racial e relações familiares.
Humberto Baltar tinha acabado de tornar-se pai quando sugeriu a criação do coletivo Pais Pretos Presentes. Ele buscava um espaço onde pudesse compartilhar as demandas e angústias de ser pai de uma criança preta. Não imaginava, porém, a urgência e o alcance dessa necessidade. Logo o debate sobre parentalidade e representatividade negra cresceu e o coletivo tornou-se uma referência nacional no assunto.
Com um público estimado de 90 mil pessoas, o coletivo transformou-se em um empreendimento social com projetos de educação, comunicação e serviços de consultoria étnico-racial, parental, de divergência e de masculinidade. As atividades de consultoria envolvem palestras, eventos, mentorias, cursos e treinamentos. Entre seus clientes estão 3M, Johnson & Johnson, Cognizant, Vivo, Itaú, BNG, Credit Suisse, entre outros.
O coletivo, que mantém parcerias com escolas, Unicef, Ministério Público e organizações do terceiro setor, também contribuiu com o primeiro relatório sobre paternidades negras no Brasil, elaborado pelo Instituto Promundo, e foi chamado para colaborar com políticas públicas voltadas para a saúde do homem negro. Atualmente, todo esse trabalho é moderado por 16 pessoas do coletivo.
O segredo do sucesso? Para Humberto, falta um repertório racial no Brasil, com informações acessíveis sobre ancestralidade africana, autores negros e cultura afro-brasileira. Além disso, a relação afetiva que se estabelece entre homens e crianças também está passando por uma transformação que não está sendo discutida:
“Embora meu pai tenha sido um bom provedor, ele não falava comigo sobre sentimentos, dúvidas e angústias. Não existia essa dimensão afetiva, e, quando meu filho nasceu, fiquei inseguro se poderia ser um pai carinhoso, porque na nossa cultura fala-se muito que não podemos dar aquilo que não recebemos”, diz.
Das redes para as empresas
O grupo começou de forma despretensiosa por meio das redes sociais, em 2018: “A questão racial era vista como vitimismo entre pais brancos e não encontrei acolhimento nos grupos de paternidade que já existiam, então perguntei no Facebook se alguém conhecia um pai preto presente para me apresentar e a publicação teve amplo alcance”, lembra Humberto.
Do Facebook o grupo foi para o WhatsApp, e lá o debate encontrou eco não apenas entre pais, mas também entre mães, famílias interraciais, educadores e outras pessoas que queriam saber mais sobre parentalidade e letramento racial. O grupo, que a princípio parecia ser apenas um espaço de bate-papo, tornou-se uma verdadeira rede de apoio.
“Quando criamos o grupo do WhatsApp, um pai disse que o filho de quatro anos não queria ir à escola porque tinha escutado do colega que ele não gostava de se sentar ao lado de menino preto. No mesmo dia, outro pai comentou que tinha perdido uma bebê de cinco meses e se queixou que todos levavam acolhimento à mãe, mas a ele, nada”, recorda-se.
O impacto das trocas levou à formação de novos grupos: Pais Pretos Presentes, Mães Pretas Presentes, Pais e Mães Pretas e Pais e Mães dos Pretinhos. Em 2020, com o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, eclodiu uma ampla campanha antirracista no mundo inteiro, incluindo o Brasil. E Baltar também passou a ser procurado por empresas para falar sobre a questão racial com os colaboradores.
A seguir, separamos os principais trechos da entrevista do Lupa do Bem com Humberto Baltar, idealizador do Coletivo Pais Pretos Presentes. Confira!
Ancestralidade africana
“A educação se tornou o eixo do coletivo. Não tem como fugir da África, das pessoas importantes para a cultura africana, para a cultura afro-brasileira. Também precisamos olhar para a dimensão afetiva do homem preto. O machismo no Ocidente afastou o homem do cuidado e isso não tem nada a ver com a cultura africana, que é de matriz matriarcal, onde a mulher é central.
No povo Dagara, da Burkina Faso, por exemplo, a mulher busca mantimentos, água, etc enquanto o homem fica paternando. Essa ideia do homem distante do cuidado é ocidental. E como o homem preto brasileiro não conhece sua própria cultura, acaba assimilando isso. O patriarcado não é o lugar do homem preto, nunca foi.”
Aquilombamento e representatividade negra
“Um dos pilares do coletivo é o aquilombamento, que é a reunião de pessoas pretas para falar de suas dores. No Brasil não existe lugar para isso. A escola não oferece esse espaço, nem a empresa e a igreja muito menos. A igreja diz que a África é lugar de demônio, espírito maligno. Então onde a pessoa preta pode falar de suas dores raciais?
Também tem a questão da representatividade. Em 2019, nós criamos uma conta no Instagram para divulgar as fotos das famílias que participavam do coletivo, pessoas curtindo seus momentos e recebemos várias mensagens de agradecimento. Eu não tinha noção de que a pessoa preta não estava acostumada a se ver num lugar que não fosse da criminalidade, subalternidade e invisibilidade…”
Acesso à educação
“Minha madrinha era professora universitária no Hospital Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e quando fiz sete anos, ela me inscreveu no sorteio do Colégio de Aplicação da UERJ. Por coincidência, o número de inscritos foi o mesmo de vagas, não teve sorteio e entrei. Isso mudou totalmente a minha vida!
Essa oportunidade é o que me permite estar aqui falando com você hoje. Eu tive uma escolaridade diferenciada, os professores do Colégio de Aplicação são todos professores universitários. Consequentemente, passei no vestibular da UERJ com facilidade, fiz Letras.
A educação foi muito importante. Minha madrinha também me matriculou na Cultura Inglesa. Estudei lá dos 12 aos 19 anos e sempre fui o único aluno preto em sala de aula. Isso era doloroso em várias dimensões, porque racismo não era pauta na década de 80 e 90 e tive que engolir várias piadas, ataques a seco, muito bullying…
Quando terminei o curso, abri um curso de inglês para pessoas pretas [Baltar é professor de inglês e continua atuando na profissão]. Só hoje consegui entender as várias dores que vivi no passado: eram dores raciais.”
Letramento racial
“A Lei nº 10.639 [que inclui no currículo oficial da rede de ensino municipal a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira] ainda não é cumprida no Brasil. Então temos alguns projetos nesse sentido. O programa Meu Filho Me Ensina traz lições que nossos filhos apresentam pelo olhar da ancestralidade africana, que enxerga a infância de uma maneira totalmente diferente.
Ainda sobre o povo Dagara, em Burkina Faso, existe um ritual para conhecer a criança, suas vocações, aptidões e inclinações. O ritual é para descobrir inclusive o nome. Diferente do Ocidente, onde existe a ideia de que os pais irão preencher a vida da criança com sentido, uma carreira e até mesmo um gênero. Essa leitura de que a criança chega vazia não existe na ancestralidade africana. A criança já chega formada nesse mundo.”
Educação parental afro referenciada
“A educação parental que estamos acostumados a ver, que fala sobre disciplina positiva, comunicação não violenta e criação com apego, são teorias que, embora sejam importantes, negligenciam as especificidades étnico raciais. Por exemplo, não dá para falar para uma mãe ou um pai preto: ‘você tem que ajoelhar para falar com seu filho, ficar na mesma altura, para que ele possa te ver como igual’.
Essa pessoa, às vezes, foi criada por um pai alcoólatra, que dava tapa na cara, foi criada à base de violência. Aí você chega achando que vai ser fácil, que é simplesmente se ajoelhar e falar com a criança na mesma altura. No texto isso é maravilhoso, mas não dialoga com a realidade de muitas famílias pretas, pobres e periféricas, que foram forjadas no abuso, na invisibilidade, às vezes, até na criminalidade.”
Infância
“A minha infância foi num espaço de 12 metros quadrados, o quartinho da empregada, onde minha mãe trabalhava. Também aconteceu comigo… Minha mãe engravidou, meu pai até tentou ficar com ela, mas não deu certo. Eles se separaram e ela foi procurar emprego. E foi trabalhar como empregada doméstica na casa de uma mulher no bairro da Tijuca.
Cresci nessa casa, aquilo foi meu mundo de 1 a 11 anos de idade. Tinha que pedir permissão para abrir a geladeira, tomar refrigerante, ligar a tv, jogar videogame. Era quase uma indigência simbólica… Para existir, eu tinha que pedir licença. Só fui entender o impacto disso recentemente, em terapia.”
Provérbios africanos
“Os provérbios africanos, adinkras*, itans** [da cultura iorubá], formam um repertório enorme para a população negra entrar em contato com os povos anteriores à existência delas. Trazem valores e princípios e através deles é possível apresentar a cultura negra de forma respeitosa, mostrar que africano não é só uma pessoa de tanga correndo atrás de fogueira como é ensinado nas escolas.
O Adinkra Menso Wo Kenten diz, por exemplo, ‘eu não vou carregar sua cesta’. O sentido é maravilhoso: no trabalho e na vida, é importante focarmos no nosso próprio caminho, afinal, ninguém mais pode fazer isso por nós. Ou seja: você deve determinar quem você é, de que forma você trabalha, o que você traz, qual é sua proposta e não fazer o que o outro diz para você!
Porque no Brasil a imagem que foi construída em torno da pessoa preta é que ela veio de um continente que só tem miséria, pobreza, doença, morte, etc. Que não tem nada para agregar. Aí a pessoa preta acredita nisso, se vê como simbolicamente inferior… Frantz Fanon tem um trabalho riquíssimo falando sobre isso no livro Pele Negra, Máscaras Brancas.
Aqui no Brasil, Neusa Santos Souza aprofunda essa pauta no livro Tornar-se Negro, em que mostra que pessoas pretas que ascenderam econômica e socialmente no Rio de Janeiro na década de 1970 não se livraram das mazelas étnico-raciais que costumavam sofrer. Mesmo mudando de bairro e de classe, as opressões, exclusões, racismo e invisibilidade continuaram.”
Licença paternidade
“Me chamaram para falar de licença paternidade em uma empresa, porque eles estenderam a licença paternidade de 20 para 40 dias e, mesmo assim, vários pais voltavam para o trabalho com cinco dias de licença. Fomos investigar por que e, trocando com colaboradores, descobrimos duas causas principais: a primeira é que muitos homens tinham medo da demissão após ficar tanto tempo fora.
O segundo era o não-lugar do cuidado colocado para os homens. Nós, homens, não somos socializados para cuidar. E quando o homem pega a licença paternidade ele não sabe dar banho no bebê, não sabe trocar fralda, não sabe lidar com cólicas de criança, porque isso não foi ensinado a ele. E o homem, por entender que masculinidade é o lugar da autoafirmação, da informação, da força e tudo mais, também não busca se aproximar desse repertório.”
Emancipação feminina
“O coletivo se tornou uma referência nacional na educação de famílias pretas porque o trabalho que começou voltado para os pais se tornou um trabalho familiar. E isso tem uma razão. A ancestralidade africana entende que não existe emancipação masculina descolada da emancipação feminina. No Brasil, quando se fala em gênero, todo mundo pensa em feminismo, mas a África nos apresenta o mulherismo africano, que é regido principalmente pelo princípio da unidade, chamado Umoja.
Não é à toa que a maioria das civilizações do continente africano é matriarcal. Há muitas frentes negras que reproduzem machismo, valores do patriarcado, e isso é um contrassenso. Compreendo que países africanos também foram colonizados e que existe machismo na África. Mas não olhar para gênero é o maior equívoco que organizações voltadas para o letramento racial podem cometer.”
Batismo
“O historiador Runoko Rashidi mostrou que nós temos nomes e sobrenomes dados por estupradores e saqueadores dos povos pretos africanos. Se hoje você carrega um Silveira, Oliveira ou outro nome de um cara que estuprou sua tataravó, então porque não adotar para si próprio um nome africano com o qual você se identifica? Quando soube disso, pensei: ‘não é menos legítimo me rebatizar’ [Baltar adotou dois nomes africanos que usa em ocasiões específicas].
Esse movimento vem crescendo no Brasil, várias pessoas pretas dando nome africano ao filho e a si próprias… É possível ir no cartório e se renomear, é um direito que todos nós temos, então é muito bacana esse resgate ancestral. Permite que possamos ter orgulho da nossa história, e passar adiante para os filhos.
Hoje, por exemplo, as crianças usam dread, cabelo black e enxergam beleza nisso… no meu tempo tinha que raspar o cabelo na máquina dois porque o discurso da escola era que cabelo crespo grande dava piolho. Minha mãe, uma pessoa humilde, empregada doméstica, não questionava a professora. Hoje, se uma professora não deixa a criança ter o cabelo do modo como ela quer, pode parar na delegacia, acusada por injúria racial.”
Resgate da cultura
“Ainda pequeno, descobri que minha mãe não conhecia os avós dela, apenas os pais… fui tentar entender porquê e ela disse que com 10 anos já trabalhava em casa de família, lavando e passando. Ou seja, ela não teve infância. Nós, pretos, não temos direito à infância. Ainda hoje vemos crianças vendendo bala no semáforo, trabalhando nas feiras livres, etc.
Por isso é essencial trazer princípios como adinkras, itans, trazer esse letramento ancestral e espiritual, porque é através desses valores e conhecimentos que podemos recuperar o orgulho de ser quem nós somos. Porque isso não chega para nós via escola ou universidade, são os coletivos, algumas pessoas na Internet, no YouTube que compartilham. Como diz Fanon, o senso de pertencimento é essencial para que se tenha um senso de valor…
Então é preciso fazer esse resgate da cultura, mas às vezes acontece de simplesmente não ser possível, porque a história se perdeu. Quando uma pessoa preta escuta uma pessoa branca falando sobre o que o bisavô ensinava, da cultura dele e ela não sabe nem quem foi o avô, isso tem um impacto terrível na autoestima, na autoimagem, na psique. É muito sério.”
Desafios
“Muitas pessoas aprendem a cultura africana com um olhar embranquecido. Então, precisamos falar sobre isso. A pessoa preta tem essa percepção extremamente negativa da África, da ancestralidade africana, e desmontar essa lógica é o trabalho central do coletivo. O racismo é um desdobramento da colonialidade. Esse é o desafio principal. A gente fica tentando combater o racismo sem olhar para a origem dele, aí não adianta nada!”
* Adinkra são símbolos do Gana que representam conceitos ou aforismos. São amplamente utilizados em tecidos, logotipos e cerâmica e incorporados às paredes e outras características arquitetônicas.
** Itan é uma palavra iorubá que significa história, qualquer história; um conto. De modo mais específico, itan são histórias do sistema nagô de consulta às divindades.
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