Capacitação gratuita e inserção no mercado de trabalho movem a Gastronomia Periférica
Negócio social oferece cursos e geração de renda no setor de alimentação para pessoas de periferias de todo o Brasil
Com uma escola que já formou mais de mil pessoas em 23 estados do país, a Gastronomia Periférica oferece capacitação gratuita e inserção no mercado de trabalho do setor de alimentação. O projeto começou em 2018 como um aplicativo, se transformou e hoje funciona como escola de gastronomia e restaurante.
A escola leva em consideração a rotina das pessoas que moram na periferia para alcançar seu principal objetivo: “O que faz alguém da quebrada desistir de uma formação é a necessidade de trabalhar. Com o ensino à distância, essa pessoa pode encaixar o curso em qualquer momento da vida dela”, explica Adélia Rodrigues, co-fundadora da empresa.
Dessa forma, a formação é feita principalmente online: primeiro, os alunos assistem às aulas através de uma plataforma na internet. Depois, é feito um aprofundamento, quando é possível tirar dúvidas com o professor, ao vivo, pela plataforma. Por último, vem a parte prática para adquirir a técnica, que é realizada sempre aos finais de semana.
A pessoa que está passando pela capacitação recebe auxílio internet, cartão alimentação e o valor dos ingredientes para a execução das aulas práticas. Após a formação, há uma nova etapa, que é levar esse aluno ou aluna a trabalhar em um restaurante ou outra iniciativa no campo da alimentação.
Da periferia para periferia
Em São Paulo, onde surgiu a empresa, a Gastronomia Periférica mantém seu próprio restaurante, o Da Quebrada, situado na Vila Madalena. “A ideia é que, uma vez capacitadas, as pessoas ocupem um espaço na nossa cozinha e que lá seja um ambiente de inovação”, diz Adélia. Tanto em São Paulo como nos outros estados, a escola faz parcerias com restaurantes e outras iniciativas locais para tentar garantir a empregabilidade dos estudantes.
Ser da quebrada e manter um restaurante na Vila Madalena, uma região privilegiada da cidade, faz parte da trajetória de resistência defendida pela Gastronomia Periférica: “Essa é uma provocação que sempre escuto, de que somos da periferia, mas estamos na Vila Madalena. Mas todos os outros restaurantes daquela região têm pessoas periféricas! A diferença é que nós somos protagonistas desse processo, não ficamos só no fundo da cozinha”, aponta.
Para ela, sua militância vem das origens periféricas. Adélia é do Maranhão e morou em Ceilândia, periferia de Brasília, antes de se mudar para o Jd. Boa Vista, zona oeste de São Paulo, quando ainda era criança. O co-fundador, Edson Leite, é do Jd. São Luiz, zona sul de São Paulo. “Nós dois viemos da periferia e tivemos nossas vidas transformadas pela educação. Mas e quem já é adulto e não teve essa chance? Vivemos em um sistema capitalista, então começamos a nos perguntar como poderíamos olhar para o sistema e levar oportunidades de geração de renda e de investimento social aos adultos. Daí surgiu a ideia da Gastronomia Periférica”, conta Adélia.
Comida, afeto e trabalho
Segundo Adélia, muitos restaurantes faliram durante a pandemia, por isso o mercado ainda está em processo de recuperação econômica. A área de eventos, por outro lado, está em franca expansão. A alta demanda por comida em reuniões corporativas acontece porque os alimentos criam conexões: “A alimentação faz o papel do quebra-gelo, aproximando as pessoas”, diz.
Ela ressalta que para trabalhar no mercado de alimentação, seja no setor de restaurante ou no de eventos, é importante ter uma formação de cozinha. “Muitas pessoas entram no mercado de trabalho achando que já serão chefes, mas na cozinha tudo é um processo. É uma profissão solitária, são muitas horas num espaço fechado, lidando com uma rotina exaustiva. E a capacitação faz com que a pessoa se sinta empoderada para a função que ocupa”, defende Adélia.
E ninguém ensina a noção de que a cozinha exige um passo de cada vez, continua ela: ‘Talvez a pessoa entre na cozinha para lavar louça ou salada. Então é preciso pensar com calma e planejar se quiser seguir carreira na área. Muitas alunas entram na cozinha e descobrem que não gostam de cozinha, por exemplo. Nesse caso, a pessoa pode trabalhar no salão. Existem várias possibilidades na gastronomia”, avisa.
Da terra para a mesa
O restaurante “Da quebrada” sempre utiliza um cardápio sazonal, oferecendo alimentos orgânicos e da estação. Tratam-se, portanto, de cardápios feitos especialmente para determinados períodos, que podem ou não se repetir em outro momento. Tudo depende do que o produtor oferece.
“Pode ser que um alimento nunca mais apareça no cardápio, porque montamos a partir do que o produtor planta, e não a partir da nossa demanda. Além de fortalecer o agricultor, o cardápio sazonal provoca o desenvolvimento criativo do cozinheiro”, explica Adélia. Os alimentos são adquiridos em Parelheiros, distrito da zona sul do município de São Paulo, que vem despontando como um importante centro de agricultura familiar e orgânica nas últimas décadas.
Levar a reflexão sobre a relação que as pessoas estabelecem com o alimento também é um objetivo do restaurante e da escola. Para Adélia, as pessoas em geral, incluindo cozinheiros, não se preocupam mais se os alimentos estão na época, forçando uma demanda que promove a disponibilidade de determinados alimentos o ano inteiro. O caso clássico é o do morango: “muitas pessoas solicitam bolo de morango para festa, mesmo quando não está na época. Nesse caso, por que não fazer com a fruta da estação?”, questiona.
Parcerias com empresa privada
A Gastronomia Periférica é um negócio social que funciona por meio de parcerias com empresas privadas. Entre os patrocinadores estão Grupo Carrefour, Mãe-Terra, Fundação Tide Setubal, Grupo BRF, Continental e outros. O projeto “Unidos pela Comida”, realizado em conjunto com a Unilever, por exemplo, combateu a fome ao longo da pandemia.
Um novo restaurante-escola também será aberto por meio de uma parceria com o Instituto Bacarelli, para alimentar as crianças que moram em Heliópolis [considerada a maior favela de São Paulo] e que fazem a formação musical no Instituto. Ao mesmo tempo, todos os projetos da GP são realizados por equipes que já passaram por suas capacitações.
A procura pelo curso é grande e as vagas são insuficientes para atender tantos inscritos. Portanto, para participar da capacitação, antes é preciso passar por uma seleção que segue alguns critérios. Segundo Adélia, as mulheres são prioridade, em especial mulheres pretas, pardas ou indígenas, já que estão entre as mais vulneráveis.
“Ano passado, por exemplo, fizemos um curso de formação em uma aldeia em Dourados. Nossa intenção foi levar conhecimento para que as mulheres de lá pudessem se organizar e gerar renda, transformando não apenas suas próprias vidas, como as de suas famílias”, diz Adélia.
Além das mulheres serem prioridade, há outros critérios de seleção ligados à origem nos territórios, idade e o próprio objetivo do curso que está sendo oferecido: o curso de cozinha e empreendedorismo, por exemplo, prioriza mulheres acima dos 40 anos, devido ao impacto do etarismo. “Precisamos sempre ler o contexto do que está posto socialmente e tentar lidar com isso para conseguir furar as bolhas”, explica.
As mulheres e a cozinha
Pergunto a Adélia por que a prioridade da escola são as mulheres, uma vez que elas já estão culturalmente inseridas no processo da cozinha desde muito jovens e acabam sendo as maiores responsáveis por preparar as refeições das famílias. Elas precisam passar por um curso de qualificação? O conhecimento que adquirem no decorrer da vida não é suficiente para trabalhar nos espaços de cozinha?
Adélia é categórica em sua resposta:
“Sim! Somos empurradas para a cozinha, muitas até desgostam do processo de cozinhar, justamente porque tornou-se uma obrigatoriedade no trabalho doméstico, e que coube a nós executar como parte de um papel social, um trabalho que não é remunerado nem reconhecido como importante pela sociedade. Mas isso não é suficiente! Precisamos nos aprofundar e, muitas vezes, resgatar nossa própria herança cultural alimentar, principalmente nas grandes cidades, que foi se perdendo”, afirma.
“Hoje em dia, por exemplo, não comemos mais as comidas da infância, que nossas avós faziam. A cidade oferece muita comida pronta, alimentos processados, tudo muito rápido. E vira um status também… ter a possibilidade de comprar uma comida congelada ao invés de fazer sua própria comida dá o status de pessoa moderna, de quem não tem tempo e resolve a alimentação rapidamente”, continua.
“Tem também a questão da técnica: nós mulheres sabemos cozinhar, muitas aprenderam quando ainda eram meninas, mas não sabemos necessariamente fazer um bom pré-preparo para que não haja desperdícios, ou mesmo mensurar o tempo que é gasto na cozinha e que deve ser levado em conta quando é preciso precificar um produto, ou então a quantidade de ingredientes que deve ser utilizada nas receitas… Então, sim, as mulheres precisam de capacitação!”, defende Adélia.
Quer apoiar essa causa?
É possível fazer as capacitações e doações pelo site!
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