Por meio da arte, Cine Cacá ensina crianças a se protegerem de abuso sexual

Ao contrário do que diz o senso comum, educação sexual não leva à promiscuidade e é fundamental para combater violência contras as crianças

25.10.23

Desde 2018, a psicóloga Catarina Sales tem levado o Cine Cacá às escolas, abrigos e ONGs para ensinar crianças e adolescentes a se protegerem de abuso sexual. Com uma cartilha de autoria própria, bonecos de pano, cenário de cinema e muita pipoca, Catarina mostra as partes do corpo e alerta sobre toques e consentimentos. O projeto vem sendo realizado em Natal (RN) de forma independente e contempla crianças de 2 a 14 anos.

As oficinas são feitas em sala de aula, com pequenos grupos. Enquanto as crianças comem a pipoca, Catarina apresenta a metodologia dos 3R, que é reconhecer, reagir e relatar o abuso. Depois projeta dois vídeos disponíveis no YouTube e apresenta as bonecas Cacá e Nina, bem como a cartilha com as partes do corpo, para falar sobre educação sexual.

O principal é mostrar que adultos não podem tocar as partes íntimas das crianças, e se isso acontecer, as crianças não precisam ter medo, nem guardar segredo. “Precisamos ensinar nossos filhos sobre abuso, porque o abusador não vem vestido de monstro. A maioria dos abusos são cometidos por pessoas conhecidas, muitos são familiares”, orienta Catarina.

Motivação 

O projeto é feito de forma autônoma, voluntária e com recursos próprios. Apesar de todos os desafios, Catarina tem um motivo pessoal que a faz continuar. Ela tinha 13 anos quando também foi vítima. “Não teve toques, mas foi uma cena horrível. Ele era muito amigo do meu pai e fui silenciada, porque a família não queria confusão”, recorda-se. 

Foi no seu primeiro estágio enquanto psicóloga que surgiu a personagem Cacá. Recém chegada ao ambiente do CREAS e movida por lembranças da infância, ela atendeu uma menina de apenas quatro anos que estava sendo abusada pelo padrasto. Começou então a consulta dizendo que Cacá foi uma criança que teve educação sexual na infância.

“Perguntei à menina se ela sabia o que era educação sexual, ela disse que não e eu expliquei: a Cacá sabe as partes do corpo e se alguém tocar, ela sai correndo e não faz segredo, fala tudo o que aconteceu. A menina começou a chorar e logo em seguida disse: ‘tia, se eu tivesse conhecido a Cacá antes, meu padrasto não teria feito isso comigo, porque eu teria saído correndo e teria contado à minha mãe’ ”. 

Catarina Sales e as bonecas Cacá e Nina. Imagem: reprodução.

Cine Cacá, conhecimento e proteção 

A psicóloga ressalta que existe violência mesmo quando não há toques na vítima: “Quando um adulto se masturba na frente de uma criança, mostra materiais pornográficos, observa de maneira sexualizada a criança no banho ou trocando de roupas, isso também é violência sexual”. 

Desse modo, o acesso a esse tipo de conhecimento é fundamental para defender as crianças. “Educar as crianças sobre seus corpos, limites pessoais e o que constitui comportamento inadequado pode capacitá-las a reconhecer e relatar situações de abuso”, diz. Ao mesmo tempo, continua, “é preciso criar um ambiente seguro e acolhedor para as crianças, onde elas se sintam à vontade para falar sobre seus sentimentos e preocupações”. 

Pensando nisso, Catarina expandiu as atividades de educação sexual para crianças maiores de 10 anos. Com a Maletinha das Emoções, ela visita alunos do sexto ao nono ano (entre 11 e 14 anos) para que eles possam escrever tudo que estão sentindo de ruim e que não conseguem falar para alguém. 

Os bilhetes são depositados na maleta contendo nome e turma, com o compromisso de que não terão seus relatos divulgados. “Apareceram casos de adolescentes que foram abusados e que tornaram-se denúncias. Inclusive ficamos sabendo de um caso de um professor que abusou na sala de recursos da escola”, aponta.

A escola e a pessoa de confiança

Quando uma criança sofre abuso, ela deve contar o que aconteceu para uma pessoa de confiança. Essa pessoa não precisa ser necessariamente da família, pode ser a professora ou a diretora da escola ou alguém da vizinhança, avisa Catarina. “A escola nesse caso é central, porque pode tomar uma atitude, fazer uma denúncia”. 

O Cine Cacá tem dado bons resultados. “Não faz pouco tempo, dei uma cartilha para uma criança e a mãe dela voltou no dia seguinte aos prantos, dizendo que percebeu que seu pai estava abusando da filha. A menina disse para a mãe que não sabia qual era o avô que ela ia encontrar, se era o avô carinhoso e legal ou o avô nervoso que ficava pegando nas partezinhas dela como a Cacá ensina na cartilha. Então funciona, e muito!”, defende Catarina.

A cartilha foi escrita em forma de rimas. Cacá, a personagem principal, ensina sua amiguinha Nina sobre prevenção de violência sexual. Como resultado, a prefeitura de Parnamirim (RN) propôs, recentemente, a compra de 14 mil cartilhas para distribuir em toda rede de ensino e oferecer capacitação sobre o tema aos professores e funcionários. 

Cuidado com as crianças 

Existe um padrão de comportamento do abusador: em geral, eles buscam crianças que não estão sob o cuidado atento dos pais. “O abusador é oportunista. Eles procuram crianças desprovidas de atenção familiar. E sempre falam para manter segredo com a justificativa de que se a mãe souber, por exemplo, ela vai bater, ou então que não vai acreditar, ou ainda, no caso do abusador ser o provedor, que ele vai deixar a casa e todos vão passar fome”, explica Catarina. 

E alerta: o abusador é uma pessoa aparentemente boa: “Atendo muitos casos de crianças que foram abusadas por líderes religiosos, por pessoas que tocam na banda da igreja, por pessoas que ficam com as crianças nos templos enquanto pai e mãe estão na oração, de  crianças abusadas por pastores, padres e freiras”. 

Abuso sexual infantil
Imagem: reprodução.

Como fazer a denúncia

Segundo relatório da Unicef, em média 100 crianças sofrem abuso sexual por dia no Brasil. As meninas com idade até 14 anos são as mais afetadas, no entanto, isso não significa que os meninos não sofram abuso. Em geral, meninos até os 9 anos de idade estão mais vulneráveis a este tipo de ocorrência.

Dados do último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde apontam que a maioria dos casos ocorre dentro de casa por alguém conhecido da criança, o que faz com que esse tipo de violência seja silenciosa e recorrente, promovendo uma sensação constante de insegurança e medo e contribuindo para a manutenção de uma cultura violenta. 

O abuso sexual infantil acontece dentro de uma relação de poder e compreende uma série de práticas sexuais que podem ou não envolver contato físico. Trata-se de um crime em que não é necessário ter certeza de uma situação de violência para denunciá-la, basta ter a suspeita. As denúncias podem ser feitas na delegacia ou no Conselho Tutelar do município. Também existe o aplicativo Proteja Brasil.

Quer apoiar essa causa?

Catarina Sales realiza o projeto Cine Cacá e Maletinha das Emoções de forma totalmente independente e com recursos próprios. Para fazer doações ou apoiar com ações de voluntariado, entre em contato pelo Instagram, WhatsApp: (84) 9 9965 1261 ou por e-mail: ctrnsales@gmail.com.

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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