Abrace terá o primeiro laboratório no Brasil com alvará de funcionamento para produção de Cannabis medicinal a partir do plantio
Associação finalmente está autorizada por decisão judicial a plantar, produzir e fornecer Cannabis medicinal no país
A Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança) foi a primeira associação de Cannabis medicinal a realizar todo o processo de fabricação dos produtos à base de Cannabis de forma legal no Brasil, desde o plantio, colheita, secagem, extração, diluição e formulação dos produtos. Essas atividades, ainda que estivessem de acordo com a lei, estavam sendo executadas por força de liminar. Recentemente, porém, sua ação transcorreu em julgado.
Isso significa que não há mais espaço para recursos e que a associação finalmente está autorizada por decisão judicial a ter seu próprio laboratório para fabricação de Cannabis medicinal a partir do plantio. Para tal, a Abrace deverá cumprir uma série de exigências feitas pela Anvisa, o órgão responsável pela regulamentação de todos os produtos de Cannabis medicinal no Brasil, por meio da RDC 327/2019.
Atualmente, a Abrace possui 47 mil associados e oferece sete medicamentos à base de Cannabis. Vale lembrar que apenas os sócios podem requerer os medicamentos devido a uma decisão da Justiça. Para se associar, é preciso antes passar por um médico e receber um diagnóstico e uma receita. A taxa de associação serve para financiar as instalações, a equipe e a produção. A Abrace ainda mantém um programa social em que concede a anuidade grátis ou parcial para quem não pode arcar com os custos e recebe inúmeros pacientes via SUS.
Democratização ao acesso de Cannabis medicinal
A Abrace criou um modelo social inovador de democratização ao acesso de produtos derivados de Cannabis para fins medicinais. Desde que foi fundada, em 2014, a associação mantém todas as operações com recursos próprios, incluindo as obras que terá de realizar para se adequar às exigências da Anvisa. Os recursos são arrecadados pelos sócios e por meio de doações.
Cassiano Gomes, fundador da Abrace, conta que nunca recusou um paciente na associação: “Quando chegamos aos 5 mil associados, teria sido ótimo se tivesse parado ali. Tínhamos cerca de 20 colaboradores, nossa vida teria sido mais tranquila, sem agressões e acusações de sermos uma indústria disfarçada de associação. Poderia ter parado nos 20 mil associados, quando tínhamos 100 colaboradores, tanto quanto posso parar agora, quando temos 47 mil associados e 250 colaboradores. Mas como seria se eu dissesse que a partir de agora vamos fechar as portas, que não vamos mais cadastrar ninguém? Quem se beneficiaria com isso?”, questiona.
As principais substâncias canabinóides usadas para fins medicinais são o CBD e o THC. O CBD é indicado no tratamento de doenças como Parkinson, esclerose múltipla, esquizofrenia, epilepsia, dores crônicas, entre outras. Já o THC atua como relaxante muscular e anti-inflamatório, com efeitos anticonvulsivos, antidepressivo e anti-hipertensivo. Além disso, é um bom aliado no tratamento do câncer, aliviando os efeitos adversos da oncoterapia.
Não à toa, dados da Anvisa indicam que houve um crescimento de mais de 93% de procura por medicamentos à base de Cannabis no Brasil no último ano. Diante desse cenário, o ganho da ação cível movida pela Abrace tem papel significativo tanto para o avanço da regulamentação do mercado de Cannabis medicinal no país, como para o amadurecimento do debate sobre o uso recreativo da planta, ainda mais neste momento em que o STF está votando a descriminalização do porte de maconha (até a publicação desta matéria, foram cinco votos a favor e um contra).
Leis e regulamentações
Em julho deste ano, a Anvisa publicou uma Nota Técnica proibindo a importação de Cannabis in natura, bem como flores e partes da planta (NT 35/2023), mesmo que para fins medicinais. Até então, era possível importar flores de Cannabis por meio de prescrição médica. As flores eram consumidas via inalação ou através da preparação de alimentos.
Contudo, a Anvisa entendeu que havia alto grau de risco de desvio do uso de Cannabis medicinal para fins ilícitos, indo em desacordo com tratados internacionais de controle de drogas dos quais o Brasil é signatário. Com a nova NT, a regulamentação atual dos produtos não inclui mais a permissão de uso de partes da planta, mesmo após o processo de estabilização e secagem ou ainda nas formas rasuradas, trituradas ou pulverizadas.
Para Cassiano, a NT 35/2023 veio como uma resposta a uma medida anterior editada pela Anvisa que foi mal feita, por isso revogaram e optaram pela completa proibição do uso da planta in natura. Ele espera, contudo, que a Anvisa faça uma nova resolução que atenda às demandas dos pacientes. E lembra que a Abrace surgiu após ele próprio fazer um preparo culinário com a planta e azeite.
“Tudo começou em 2013, quando minha mãe apresentou uma condição de saúde grave. Ela ficou internada sete dias com o auxílio de respiradores, o médico disse que não havia mais nada a fazer e mandou de volta para casa. Mas ela não estava conseguindo comer, nem dormir. Eu sabia que a Cannabis tinha a propriedade de dar apetite e sono. Comprei maconha, fiz na cozinha com azeite e dei uma colherzinha de chá para ela. Uma hora depois, ela estava lavando os pratos”, recorda-se.
Para saber mais sobre como a Abrace funciona e qual a importância da descriminalização do porte de maconha para o avanço na regulamentação da Cannabis medicinal no Brasil hoje, leia a entrevista completa que o Lupa do Bem fez com Cassiano Gomes, fundador da associação:
LB – A Abrace é a maior associação de pacientes de Cannabis no Brasil, com quase 50 mil associados. Como foi o processo de construção da associação?
Depois que vi o efeito da Cannabis na minha mãe, comecei a ajudar os vizinhos e o pessoal da universidade. Estudava Direito na época e fui vendo que todos tinham a mesma resposta. Foi quando comecei a virar um ativista e abandonei a faculdade, porque não consegui conciliar. Criamos a Abrace na minha casa, aqui é a sede até hoje, onde tem o laboratório, fazemos o cultivo e garantia da qualidade. E comecei a socorrer as pessoas. Primeiro vieram 10, depois 20, 30 pessoas. Quando chegou a 66, tive um colapso e as mães disseram que iam me ajudar, me proteger, entrar na justiça… foi quando fundamos a associação, com registro em cartório e na Receita Federal. Daí para frente foi só luta para não parar, ser preso ou ter os tratamentos impedidos, já que utilizamos os Correios para enviar os óleos de Cannabis.
LB – A associação pode fabricar os medicamentos, mas não pode enviar pelos Correios, é isso?
Sim! Nós não podemos enviar nossos produtos pelos Correios, mas nós enviamos. Aliás, todas as associações enviam. Existe um limbo jurídico, porque os remédios da Abrace são fornecidos com receita simples, que é a receita branca, não é a receita azul, de controle especial. Porém, a Anvisa obriga que os medicamentos de Cannabis medicinal no Brasil sejam de controle especial, com receituário azul ou amarelo. E não conseguimos cumprir essa determinação ao pé da letra. Por isso temos exigido que a Anvisa faça parte dela. A Anvisa precisa regulamentar de forma que as associações possam cumprir com as determinações.
LB – Qual é a diferença entre uma associação para uma empresa de Cannabis?
A Abrace não visa o lucro. Existe uma indústria dentro da associação que visa garantir e melhorar a produção, para que possamos diminuir o custo do óleo, que, a meu ver, poderia estar em torno de R$60-50 reais o frasco [hoje a Abrace vende os frascos entre R$220 e 360]. Porém, ainda não temos condições de fazer isso, porque temos um laboratório e uma farmácia em obra. Na verdade, são sete obras, e o laboratório é padrão B, que exige atmosfera negativa, um padrão para a indústria, que fomos obrigados a seguir pela Anvisa. Se pudesse, teria seguido o modelo de farmácia viva, que é bem mais barato, mas nós não tivemos escolha.
LB – Por que esse modelo da associação é um modelo social inovador?
Hoje o Brasil tem uma realidade que é diferente dos outros países. Nós conseguimos emplacar um modelo diferente, mais social, democrático, que não visa lucro, porque todo dinheiro arrecadado é investido dentro das próprias associações, e isso faz com que possamos avançar cada vez mais, mesmo sem capital externo, sem investimento de especuladores ou de bancos. São cerca de 50 associações de Cannabis no Brasil, o nosso propósito é democratizar cada vez mais o acesso, mas apenas 13 são autorizadas pela Justiça a fazer o medicamento e fornecer para associados.
LB – A Anvisa emitiu em julho a NT 35/2023, que proíbe a importação de flores ou outras partes da planta, mesmo para fins medicinais, e já foi acionada pela justiça para revogar a Nota Técnica. Por que é tão difícil regulamentar a Cannabis medicinal?
O que aconteceu é que um paciente precisava da flor, entrou na Justiça, ganhou autorização para importar a flor e a Justiça obrigou a Anvisa para que fizesse uma resolução sobre importação da flor. A Anvisa fez, mas foi mal feita, deu problema e revogaram. Porque as pessoas estavam vendendo prescrição médica, fazendo propaganda, entrando em festas com a receita na mão junto com a flor. Então queimou a largada. Houve essa precipitação do mercado, das pessoas que gostam da cannabis e querem usar socialmente. Agora, esperamos que a Anvisa dessa vez faça bem feito.
LB – A discussão no Brasil sobre uso de Cannabis, seja medicinal ou não, ainda faz parte de um debate moral em torno da planta, quando já deveria estar sedimentado que o debate é sobre justiça social e saúde pública. Poderia falar um pouco sobre isso?
Bem, existem princípios que estão sendo quebrados. O principal, a meu ver, é que o sujeito pode fazer o que quiser consigo próprio. Há ainda o princípio da razoabilidade, onde temos percebido que a lei provoca mais danos do que proteção. A sociedade está pagando um preço alto por isso, já que o encarceramento ultrapassou limites e vem causando a banalização do crime.
Então, a maioria das pessoas que são presas hoje, mesmo com 20-30 gramas de maconha, pega de cinco a oito anos de cadeia. Talvez essa pessoa cumpra apenas metade da pena, mas ela já foi prejudicada, não vai mais conseguir arranjar um emprego e o tráfico nessa altura já a substituiu por outra pessoa. Ela vai sair da cadeia sem ter como se manter ou manter a família e vai voltar para a criminalidade. Isso vem acontecendo durante os 80 e poucos anos dessa lei, desde quando começou lá atrás, no Rio de Janeiro, com a lei da proibição do pito do pango.
A lei foi feita para os negros escravos que estavam fazendo suas crenças, o candomblé, a capoeira, e tudo aquilo era criminalizado junto com o pito do pango. É dali que surge a proibição. Isso permaneceu, veio com viés americanizado em relação a campanha “Diga não às drogas”. Mas quando lembramos que Dorival Caymmi escreveu uma música que já falava do bujãozinho da Merck, que era cocaína e vendia na farmácia… se pagava imposto, o Estado tinha apenas que garantir que não houvesse abuso, como é feito hoje com as substâncias de controle, como morfina, fentanil, entre outras drogas que são populares. Então, criminalizar as drogas é o maior erro.
LB- No caso do uso da Cannabis medicinal, o debate deveria estar focado sobretudo na pesquisa científica…
Com certeza! Aqui na Abrace sempre prezamos pela pesquisa. Tanto que quando começamos, elaboramos um consentimento de pesquisa para que todo paciente assinasse. Batizamos o óleo da Abrace de ensaio clínico. E definimos que os óleos não poderiam ser vendidos para terceiros, era intransferível. E todos os médicos que estavam chegando ali, em 2015, 2016, tinham cunho de pesquisador. Já fizemos parcerias com a UFMG, UFMA, UFPB e diversas universidades. Chegamos a ter 25 pesquisas em andamento. Mas em determinado momento, a Anvisa nos proibiu de continuar, porque não tínhamos autorização de pesquisa. Foi um choque pra gente! Porque o que mais se fala e se alega é que não existe pesquisa. E a gente sabe que existe…
LB – A Abrace faz algum trabalho ativista, de articulação política no Congresso, por exemplo, para defender o uso da Cannabis?
Não! A Abrace atua sempre em prol do associado. Eu mesmo tenho deixado o ativismo um pouco de lado porque preciso proteger a Abrace. Somos alvo de muitos ataques, incluindo de políticos. Fizeram um vídeo meu, por exemplo, foi um político que postou nas redes sociais, o vídeo tinha vários cortes, mudaram o contexto, fizeram colagens dizendo que sou traficante disfarçado de ongueiro, que quero regulamentar e liberar o uso da maconha no Brasil.
LB – Vários países já descriminalizaram a maconha. O que podemos aprender com esses países?
A diferença entre uso medicinal e social de maconha hoje é a receita. E o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, fez uma lei que permite o uso de maconha sem receituário, mas que precisa ser comprada nos dispensários. É só isso. Quase todos os países que já descriminalizaram a maconha, despenalizaram o usuário. E alguns países regulamentaram o comerciante. Óbvio que vai continuar tendo gente vendendo por fora, de maneira ilegal. Mas aí é preciso ver como uma contravenção fiscal como outra qualquer, aplicar multa, mas não jogar no cárcere, esse é o grande erro da legislação. Ela é punitiva, discriminatória, racista e misógina, muitas mulheres se arriscam pelo amor que tem pelos seus maridos…
LB – Quando o STF começou a julgar essa questão do porte, como ficou o debate sobre a Cannabis medicinal?
Bem, as mães sempre tiveram medo de transportar os óleos, inclusive de adentrar nos hospitais, nas áreas de emergência. Porque até 2018 não havia autorização para transporte. Se entrasse no avião, a polícia federal poderia autuar. E tiveram pessoas que foram de fato autuadas. Por isso existe essa necessidade de todas as substâncias serem regulamentadas. Esse é o cerne da questão.
Uma paciente que tem Alzheimer e vai para Portugal [levando óleo], por exemplo… chegando lá, ela não vai ter problema porque é descriminalizado, mas se ela for pega em São Paulo, aqui a legislação especifica o CBD, mas não o THC… “Ah, mas esse óleo é de uma associação”, ela pode se defender. “E a associação, está autorizada a produzir óleo de THC?”
Então, tudo poderia ser uma questão de fiscalização, mas o caminho dado pela legislação hoje é apenas encarcerar. Não há limites para Lei No. 11.343 e o STF está tentando definir esses limites. Tem muita coisa para fazer. E nós também estamos no meio disso tudo. São mais de 50 associações no Brasil que se uniram, nós criamos a UNACAM e fizemos um encontro de uma semana aqui em João Pessoa. A Anvisa compareceu, Ministério Público, OAB, diversos políticos… E foi maravilhoso, porque conseguimos respaldo para garantir uma representatividade para que as leis sejam aprovadas no Congresso.
LB – Na sua opinião, qual seria a melhor saída legal para essa questão?
Hoje, no Brasil, é preciso o receituário azul para comprar Cannabis na farmácia. Até aí, ok. Mas podemos vender? Não! Por quê? “Porque faz mal às crianças”, argumentam. Mas como assim? Se as crianças estão usando e estão se salvando! “Ah, mas não é fumado”, argumentam de novo. Tudo bem, mas a gente também tem spray, tem vaporizador. “Ah, mas não pode fazer VAP nos lugares”, defendem. Mas tem que poder! E o imposto arrecadado com venda de Cannabis o governo pode reverter para educação e saúde. Isso seria o ideal.
Basicamente, é o que o STF está tentando estabelecer. O STF não vai só estabelecer a quantidade de porte. Também vai obrigar a Câmara a fazer a lei, regulamentando o uso, a comercialização e a industrialização do mercado nacional de Cannabis. E aí, provavelmente, deve exigir o receituário médico. Pacientes de câncer, epilepsia, dores crônicas, esclerose múltipla, esclerose amiotrófica… tem muitas condições que exigem que se faça o uso vaporizado ou fumado, seja como for.
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