Agroecologia e sabedoria indígena recuperam áreas degradadas do povo Terena 

Liderada por indígenas, organização Caianas promove educação ambiental e segurança alimentar em Miranda, Mato Grosso do Sul

26.04.23

A maneira como o povo Terena cultivava suas terras foi profundamente alterada com o avanço da pecuária intensiva na região de Miranda, Mato Grosso do Sul. Além da pecuária, monocultivos de cana-de-açúcar, e mais recentemente, de soja, vêm transformando a paisagem em todo estado. Buscando reverter esse cenário, os Terenas da Terra Indígena Cachoeirinha começaram a usar técnicas da agroecologia, com resultados agrícolas e ambientais importantes. 

Através de sementes crioulas e conhecimentos ancestrais, eles já recuperaram cerca de 30 hectares de terras degradadas próximas ao Pantanal. O sucesso se deve ao plantio de árvores aliado à produção de raízes, grãos, legumes, verduras e flores, tudo no mesmo espaço e de forma orgânica, ou seja, sem uso de agrotóxicos. 

A prática enriquece o solo e protege as nascentes de água. Além disso, promove a diversidade agrícola, que garante a autonomia e segurança alimentar. Nesse processo, diversas variedades de plantas comestíveis que tinham sido esquecidas ao longo do tempo voltaram a ser cultivadas. Com isso, antigos hábitos alimentares tradicionais também se restabeleceram, melhorando a saúde da população local. 

Imagem: Reprodução Caianas.

Práticas agrícolas tradicionais

A agroecologia pode ser explicada a partir de diversos conceitos científicos. Porém, como diz o assessor de comunicação da Caianas, Neiriel Terena, “a agrofloresta, na verdade, é uma agricultura ancestral Terena, a gente já praticava essa agricultura antigamente”. 

De fato, estudos sobre a origem da agroecologia apontam que a ciência foi desenvolvida e aprimorada com base em práticas agrícolas tradicionais, de diversos povos ao redor do mundo. Formalmente, no entanto, a agroecologia tornou-se conhecida entre os Terena em 2012, a partir da implementação do Projeto de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (Projeto GATI). 

O programa, desenvolvido pelo governo federal em parceria com organizações internacionais, é resultado da luta de várias lideranças indígenas no Brasil, não somente dos Terena. O objetivo do Projeto GATI é promover a inclusão e fortalecimento das práticas indígenas de manejo, uso sustentável e conservação dos recursos naturais, e vem contemplando diversas terras indígenas do país, desde 2008.  

Quando o projeto GATI foi implementado na TI Cachoeirinha, 34 famílias aderiram e começaram a trabalhar com as técnicas da agroecologia. Para o coordenador da Caianas, Arildo Cebalio, foi naquele momento que a semente da organização começou a germinar: “como era um projeto do governo, tinha data para terminar, e a gente entendeu que aquilo não poderia parar, tinha que continuar”.

Imagem: Reprodução Caianas.

O resgate da cultura agrícola e alimentar, no entanto, não tem sido uma tarefa simples. Segundo Arildo, existe uma noção comum de que é melhor trabalhar como mão de obra nas fazendas da região e pagar alguém para plantar um pouco de mandioca e feijão, do que recuperar e trabalhar a própria área. 

Para ele, o desafio está no entendimento das pessoas sobre o que é agroecologia e as possibilidades econômicas ligadas ao cultivo. Ele lembra que levou um “choque de realidade” quando participou da primeira oficina de agroecologia: “foi como se um véu tivesse caído, ali percebi que podia trabalhar e ganhar dinheiro com a minha própria terra”. 

O difícil, diz, foi convencer a esposa. Ela, assim como tantos outros parentes, esperava que Arildo fosse trabalhar fora. Mas agora, depois de quase 11 anos, ambos estão satisfeitos com a transformação da terra. “Hoje, é ela quem me ajuda e me incentiva, então é um processo longo, mas que vale a pena”, explica Arildo.

Ação para natureza

Kayanás representa os sábios e pensadores do povo Terena. O conceito serviu de inspiração para batizar o nome do Coletivo Ambientalista Indígena de Ação para Natureza, Agroecologia e Sustentabilidade – Caianas. O coletivo surgiu em 2015, pouco antes do Projeto GATI encerrar as atividades na TI Cachoeirinha.

Atualmente, o coletivo oferece assessoria técnica de agroecologia para famílias da TI Cachoeirinha, e outras aldeias dentro e fora do Estado. Além de promover uma agricultura ancestral, também atua com educação etnoambiental, coleta e proteção de sementes e apoia outras comunidades e coletivos indígenas com restauração do solo e segurança alimentar. 

A organização deu oficina, por exemplo, para os indígenas Guató, considerado o povo do Pantanal por excelência. No ano de 2021, eles foram severamente impactados por queimadas nas suas terras e encontravam-se em situação de vulnerabilidade social. Como lembra a assessora de projetos da Caianas, Valéria Surubi, “teve seca nos rios e eles passaram sede”. 

Diante dessa situação, a Caianas retornou para fazer outras atividades que pudessem gerar renda, como produção de artesanato indígena. A expectativa é que os Guató recuperem sua autonomia e possam viver sem precisar recorrer ao assistencialismo em breve.   

Agroecologia
Imagem: Reprodução Caianas.

Cosmologia Terena

Para os Terena, o conceito de agrofloresta chegou para lembrá-los da sua agricultura ancestral. Neiriel Terena conta que quando as famílias da TI Cachoeirinha se sentaram para decidir as linhas de ações da Caianas, rapidamente perceberam que os conhecimentos utilizados na agricultura de base ecológica eram os mesmos que eles já praticavam no passado.

A agricultura Terena, porém, não é feita apenas com base no plantio de espécies arbóreas e espécies agrícolas, como defende a abordagem técnica e científica da agrofloresta. Para eles, o plantio dessas plantas deve vir associado com a espiritualidade. Ou como diz Neiriel, “para construir uma agrofloresta, a gente precisa estar bem, precisa dialogar com outros seres”. 

Assim, quando os agricultores e agricultoras Terena fazem o plantio, ou quando coletam as sementes, há um processo de benzeção. “A gente benze para que outros seres encantados protejam as sementes, para que a partir dali possam ter frutos prósperos”, explica Neiriel.

A benzeção é feita pelos anciões das aldeias, que dominam a pajelança e o xamanismo. São eles que ensinam aos mais novos como é feito o plantio e também o diálogo que é preciso ter com os seres encantados.

Agroecologia
Imagem: Reprodução Caianas.

Nós somos terra

Desde que a agroecologia foi implementada nas aldeias, estima-se que 30 variedades de mandioca foram recuperadas, além de seis de feijões. Essas variedades foram identificadas com os antigos, explica Arildo.  

Para ele, a principal luta hoje é conscientizar sua própria geração sobre a importância desses conhecimentos. E cita o exemplo de uma árvore qualquer: quem não conhece a árvore, vai dizer que ela não presta, diz. “Mas não existe isso, se ela cresceu, é porque tem uma finalidade, às vezes a gente ainda não sabe, mas pode ter efeitos medicinais, funções artesanais, dá pra fazer corda com a casca da árvore, enfim, para alguma coisa ela vai servir”, explica Arildo.

O mesmo acontece com as plantas medicinais. Ele lembra que tinha uma farmácia em sua terra, mas não sabia, porque ainda não conhecia todas as plantas medicinais. Por isso, conta, faltam-lhe palavras para explicar a importância que a Caianas está promovendo com o resgate desses conhecimentos: “isso não está impactando apenas nós, indígenas, mas toda a sociedade, o não-índio também, porque nós somos terra e precisamos cuidar dela!”

Quando os Terena plantam a roça, por exemplo, precisam dividir os alimentos do plantio com os animais selvagens, como porco do mato, viado e tantos outros, porque eles não têm mais o que comer no seu habitat natural. “Até isso é difícil, então a gente precisa plantar mais rápido, precisa abrir mais espaço para que a nossa fauna possa sobreviver”, avisa. 

Agroecologia
Imagem: Reprodução Caianas.

Autonomia alimentar

Laranja, abacate, abacaxi, quiabo, abóbora, maxixe, cacau… esses e tantos outros alimentos tradicionais da cultura Terena vêm sendo substituídos por uma alimentação industrializada nos últimos anos. Muitos agricultores indígenas costumam vender sua pequena produção familiar de mandioca e feijão para comprar alimentos ultraprocessados nos supermercados locais. 

Por isso, conta a pedagoga e vice-coordenadora da Caianas, Jussara Leme, é preciso sempre educar as crianças e conscientizar os pais sobre os benefícios da alimentação tradicional. O hábito alimentar saudável tem sido defendido pela Caianas nas escolas e no próprio processo de produção agroecológica das famílias. 

Arildo, por exemplo, lembra que muitos dos alimentos que ele costumava comer, hoje já não come mais: “tenho outras opções, o que cultivo na minha área me oferece novas alternativas de alimentos saudáveis”. Para Valéria Surubi, a questão do custo alimentar é central. A variedade de alimentos produzidos pelas famílias evita que elas comprem alimentos no mercado, diminuindo os gastos com alimentação. 

Ela lembra que a Caianas também mantém um projeto de cultivo na escola Mãe Terra, garantindo a merenda escolar das crianças. “Quando sobram muitos alimentos, os pais também podem pegar e levar para suas casas”, explica Valéria. Com isso, diz, o projeto tem fortalecido um processo de desconstrução de famílias que ainda não aderiram ao cultivo agroecológico, por terem muitas dúvidas sobre suas reais possibilidades. 

Agroecologia
Imagem: Reprodução Caianas.

Coletividade

Muitas pessoas contribuem voluntariamente no desenvolvimento dos projetos da Caianas. De técnicos a professores e assessores, a organização conta com uma série de profissionais dispostos a doar seu tempo pelo bem comum. 

A estrutura financeira da organização, no entanto, é insuficiente. Para garantir o financiamento das atividades, a Caianas busca recursos principalmente através de editais. Segundo os coordenadores, contudo, o acesso aos editais é dificultado pela burocracia e rigidez dos concursos.

Além dos editais, a Caianas também mantém parcerias com a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e o Instituto Técnico Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS). Voluntários, novas parcerias e colaborações são sempre bem-vindas, avisam os coordenadores.

Quer apoiar essa causa? 

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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