Espaço de resistência na Zona Sul do Rio de Janeiro: a ONG Casa Nem melhora a qualidade de vida de pessoas LGBTQIA+

A casa Nem, fundada por Idianare Siqueira, em 2016, acolhe e dá suporte à pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social

20.10.21

A casa Nem, fundada por Idianare Siqueira, em 2016, acolhe e dá suporte à pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social, econômica e que muitas das vezes estão expostas à violência nas ruas ou mesmo dentro de casa. Até os dias de hoje, essa instituição já transformou as vidas de centenas de pessoas nessas condições. Esse projeto é um desdobramento de outro, o “Prepara Nem”, uma iniciativa na área educacional, um curso preparatório para o vestibular para inclusão de pessoas trans nas universidades. O tempo fez a fundadora perceber que algumas alunas estavam enfrentando dificuldades em relação à moradia e auto sustentação, então resolveu expandir as ações para dar um suporte maior. 

As jovens Colle Christine, de 24 anos, e Lissandra Cardozo, de 21 anos, ambas acolhides da Casa, me contaram sobre o projeto e a importância de fazer parte dele. 

Neuza Nascimento: Qual o propósito do projeto?

Colle: Os objetivos do projeto são tirar pessoas LGBTIA+ da marginalidade, dar um modo de vida autônomo, promover e incentivar o ingresso nas universidades, dar caminho para a auto sustentabilidade, trazer à tona e mostrar a independência dessas pessoas, dar  educação política, ensinando seus direitos para que saibam o que é transfobia (discriminação contra as pessoas transexuais e transgêneros, seja intencional ou não) e racismo; prepara-las para que saibam dialogar dentro dos lugares onde não querem nossos corpos e que consigam entrar  e sair desses lugares, para que todas consigamos realmente operar uma mudança dentro de nossa comunidade, trazendo nossa diversidade na pluralidade de nossos corpos.

Neuza Nascimento: Quais são as atividades da Casa?

Colle: Além da acolhida, que é o mais importante, a Casa oferece Muay Thai, Capoeira, aulas de inglês, assistência psicológica e, em breve, teremos aulas de Crochê. Quem dá as aulas são amigos da Indianare, acolhides ou até ex-acolhides, que já estão formados e já tem suas vidas organizadas e doam, na medida do possível, o tempo livre para nos ajudar. Também captamos e distribuímos cestas básicas, para os não acolhidos, pessoas que não moram na Casa, mas que nos pedem ajuda. Fazemos um pequeno cadastro e entregamos uma Cesta ou outros itens que estejam disponíveis para doação na Casa, se a pessoa manifestar necessidade. Isso é possível porque estamos sempre recebendo doações. 

Neuza Nascimento: A Casa Nem tem espaço próprio? 

Colle: Sim, conseguimos esse lugar depois de sermos tirados de muitos outros espaços. A Casa Nem já passou por Copacabana, Botafogo, Lapa, já moramos até numa escola. A Casa vem de várias ocupações para conseguir, depois de cinco anos de existência, esse espaço aqui. Foi um empoderamento no viver do dia a dia. Esse espaço onde acontece o acolhimento e as atividades é cedido oficialmente pelo governo, a princípio por cinco anos, acontecendo a renovação do contrato, podemos ficar por mais cinco. 

Neuza Nascimento: Existe uma equipe? E se sim, essa equipe é remunerada? 

Colle: Existe a equipe de comunicação, formada por cinco pessoas; eu, Duda, Douglas, Kira e Odara. Nossa função é gerir as redes sociais para conseguir doações, divulgar o projeto e os eventos quando acontecem. E tem outro grupo que gere a Casa, fica de frente, mas no final todo mundo se envolve colaborando no que pode e no que tem capacidade. Cada um de nós, da equipe de comunicação, recebemos uma ajuda de custo no valor de R$400,00 reais (quatrocentos reais) mensais, cada. Esse dinheiro chega via doações mensais. Estamos tentando uma mobilização pelas redes para que essa a Bolsa seja estendida a todos os acolhides, pois no momento isso não está sendo possível. 

Indianare, fundadore da Casa Nem, em protesto por direitos pela comunidade LGBTQIA+. Foto: Arquivo pessoal
Indianare, fundadore da Casa Nem, em protesto por direitos pela comunidade LGBTQIA+. Foto: Arquivo pessoal

Neuza Nascimento: A Casa apoia pessoas externamente?

Colle: Sim, nós temos uma rede muito grande. Por exemplo, tem o FIST (Frente Internacionalista dos Sem –Teto), da qual a Casa Nem faz parte e é uma colaboradora. A Casa ajuda as ocupações da FIST, ajuda as meninas da Maré, o Fórum LGBTIA+ e pessoas em situação de rua. Faz parte também da REBRACA (Rede Brasileira de Casas de Acolhimento LGBTIQA+), uma rede de organização de todas as Casa de acolhimento LGBTQIA+ do Brasil.

Neuza Nascimento: Quais os critérios para ser um acolhide?

Colle: Para ser um acolhide na Casa a pessoa tem que fazer parte do grupo LGBTIA+ e estar em situação de vulnerabilidade. O foco são as pessoas trans, pois há um recorte mostrando que esse grupo é o que mais necessita apoio. Mas não sendo desse grupo, se for um caso de urgência, analisamos a situação e a acolhemos. Se não for possível a acolhida, existem outros lugares para o qual, nesse caso, podemos encaminhar.   

Neuza Nascimento: E quantas pessoas estão acolhidas na Casa Nem agora?

Colle: Hoje estamos com cerca de 30 acolhides, todos do grupo LGBTIA+.

Neuza Nascimento: Como as pessoas encontram a Casa?

Colle: Algumas pessoas entram em contato pelas redes sociais, outras através de alguém que já conhece a casa, são várias formas. 

Neuza Nascimento: E quais são as maiores vitórias da Casa Nem?

Colle: A maior vitória está no fato de que quase todos os acolhides saem da Casa com suas vidas organizadas, voltam para ajudar os que ainda não conseguiram. As pessoas que passaram no Vestibular, através do “Prepara Nem”, ingressaram em universidades, se formaram e hoje trabalham, mas não esquecem que moraram aqui e sempre voltam para ajudar como voluntários. E também, claro, o fato de termos pessoas formadas através do projeto porque, entrar na universidade pode ser, entre aspas, um caminho fácil, mas permanecer no ambiente é difícil. E, em seguida, considero uma grande vitória também a conquista dessa sede própria. Não termos medo do despejo, da polícia na porta nos barrando, medo de ter as pessoas nos jogando coisas pra gente sair daquele lugar, sem medo de ver nossas coisas jogadas na rua e não termos pra onde ir. Não ter medo que nos matem.

Neuza Nascimento: Como a Casa se mantém?

Colle: Primeiro via Plataforma EVOE, onde as pessoas fazem doações mensais e também através do nosso Pix e conta bancária, que estão na Rede. Temos pessoas que acreditam no projeto, acreditam na comunidade LGBTIA+ e também na forma de trabalho e de acolhimento que a Casa Nem trás para esses corpos. Nos mantemos também através de doações seja de um sofá, um cobertor ou uma tampinha de garrafa que dê pra fazer um artesanato. Tudo é doação. Todos sempre ajudam a casa de alguma forma. Com produtos de higiene e limpeza, cede um carro ou caminhão para recolher Cestas Básicas ou outras doações, ajudam de várias formas. 

Lissandra: Temos também geração de renda através da  Kuzinha Nem, cozinha Vegana,  em parceria com o Palco Lapa 145 e o Queer Brechó. Mas ainda não é o bastante para a Casa se auto sustentar. 

A manutenção física é feita por nós, acolhides. O gerenciamento e andamento da casa, limpeza e alimentação, tudo que gira em torno do ambiente onde vivemos, é dividido. A equipe de comunicação, que também mora na Casa, é responsável pelas questões institucionais, cada um faz um pouco. É um trabalho coletivo.

Neuza Nascimento: Qual o envolvimento do entorno onde acontece o projeto?

Colle: Eles não gostam da gente, existe o preconceito, o racismo, a transfobia, estamos no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, estamos cercados por pessoas que não aceitam que moremos no mesmo lugar que eles. Temos uma casa na quadra da praia sim, que ganhamos do governo depois de muita luta, e nos atacam por isso. Tínhamos uma van, na qual viajávamos o Rio de Janeiro inteiro, até na Baixada Fluminense nós íamos para coletar doações, mas perdemos. Perdemos porque alguém derramou litros e mais litros de tinta sobre o motor. Existe uma violência velada contra nós, não podemos dizer que é explícita, porém ela existe. Mas continuamos aqui, resistindo. Por outro lado, tem moradores próximos que ajudam sim.

Neuza Nascimento: Qual foi o maior desafio do projeto

Colle: Sempre foi trazer moradia, sustentabilidade, consciência social e política para as pessoas trans e pessoas pretas. Nos colocar em ascensão na sociedade, mostrar determinados caminhos que sejam nas universidades, ou nas esquinas, a pessoa tem que poder estar onde quer estar. Outro desafio é termos emprego, direito à saúde e poder trazer vida e humanidade para esses corpos, muitas vezes julgados e assassinados. Tudo isso ainda é um desafio pra nós. Só no primeiro semestre de 2021, a nível de Brasil, foram mortas 80 pessoas trans.  O maior índice foi no Ceará, seguido de São Paulo e Rio de Janeiro. Por isso a Casa é tão importante pra nós.

Lissandra: Nossa expectativa de vida é no máximo 35 anos de idade, e a Indi (Indianare Siqueira) pode ser considerada uma pessoa idosa, pois já está em torno dos 50 anos, já ultrapassou a expectativa de vida dela quase duas vezes. Eu tenho 21 anos e a Colle 26, já somos mulheres velhas. A trans mais nova morreu com 13 anos.

Nosso tempo de vida é decidido por outros e não pela natureza. Não é só a violência física, tem a violência psicológica que nos é imposta desde criança, também nos mata. O fenômeno da disforia (estado caracterizado por ansiedade, depressão e inquietude, uma doença muito comum em pessoas trans) leva muitas de nós a fazer loucuras para alcançar um padrão de beleza cisgenero binário, nos colocando em situações que também podem levar à morte. Tudo isso vem das crenças que são pregadas pela sociedade, é uma violência psicológica que nos é imposta desde antes do nosso nascimento. 

Neuza Nascimento: Quais as necessidades da casa?

Lissandra: Precisamos de doações de materiais de higiene e limpeza, gêneros alimentícios perecíveis e não perecíveis, temperos, ração para gato e cachorro, agasalhos, cobertores, roupas de cama. O que você tiver na sua casa, não for usar mais e estiver em bom estado, nós aceitamos. Precisamos de pessoas voluntárias, professores de inglês, e também pessoas que doem através da plataforma EVOE, Dependemos muito disso para manter essa casa aberta e o projeto vivo. Minha maior felicidade, como moradora daqui, é poder acordar de manhã, olhar no espelho e ver que eu ainda sou eu, e isso eu só consegui aqui. E a Casa só existe ainda hoje porque as pessoas estão sempre apoiando esse projeto lindo, sempre se preocupando com as necessidades da Casa, com as necessidades de nossos animais. Acolhemos também cães e gatos, na medida do possível. É muito importante cada doação, cada compartilhamento das nossas redes sociais, porque a visibilidade hoje em dia é muito importante. 

Neuza Nascimento: Vocês conseguiram manter o atendimento em 2020?

Colle: No início da Pandemia a Casa estava em Copacabana. Conseguimos fazer uma arrecadação de Cestas Básicas abundante, não nos faltou comida e pudemos ajudar muitas pessoas. O governo nos apoiou num projeto que consistiu na produção de 800 máscaras, e todos os que trabalharam foram remunerados. Na época a Casa tinha 60 pessoas acolhidas, animais e até crianças, pois foi um momento difícil para todos, não só para as pessoas LGBTIA+. Tínhamos uma estrutura de segurança contra o contágio e não aconteceu nenhuma infestação do vírus no prédio. 

Lissandra: A casa não fechou, não podíamos fechar. A pessoa, assim que entrava na casa, era encaminhada para fazer a desinfecção e em seguida era integrada à rotina da Casa. E assim continua hoje. Nossas saídas são limitadas, já que moramos num coletivo, temos que ter responsabilidade para com as outras pessoas.

Colle: Já passamos pela pandemia do HIV Aids que foi voltada para comunidade gay LGBT, então já sabemos como sobreviver e superar esses obstáculos que a vida coloca diante de nós.  

Neuza Nascimento: Algo mais que gostariam de falar que eu não perguntei?

Colle: Gostaria de deixar registrado aqui que hoje, as pessoas LGBTIA+ não precisam mais passar por violências dentro de casa ou em outros lugares onde nossos corpos não são aceitos. Por todo Brasil existem Casas de Acolhimento para essas pessoas.

Lissandra: Casa Nem, Casa Viva (risos)

Depoimentos de acolhides

“Estou há quatro meses na Casa. Eu não queria vir para o Rio, vim porque estava numa situação difícil com os meus pais. A Casa Nem me ajudou muito. Me deram comida e um teto, e hoje eu posso ser quem eu realmente sou, sem precisar passar por violências. Aqui é um ambiente de construção, nós produzimos muito conhecimento pra nós mesmos e, aqui juntes, estamos sempre compartilhando. Além de nos munir de poder, o projeto traz o acolhimento e a oportunidade de vida digna, que nos tem sido negada historicamente. Estou cursando Psicologia e pretendo ficar aqui até eu me formar.”  

Lissandra Cardozo, 21 anos, está há quatro meses na Casa. Veio de Três Rio, interior do Rio de Janeiro.

Pra mim a Casa Nem tem sido tudo, mudou a minha vida. Eu ia praticamente morar na rua e ela me acolheu, me deu um abraço de mãe. Eu vim pro Rio na esperança de conseguir um trabalho, mas não tive sorte. Cheguei aqui através de uma conhecida que me falou desse espaço. Aqui não teremos necessidade de passar por experiências ruins porque aprendemos com os erros ou acertos das outras pessoas que chegaram antes. Temos um espírito de coletividade e isso é uma das coisas boas da Casa. Considero todos como se fossem minha família.”

Wellington, 20 anos, na Casa há sete meses. Veio do Ceará.

Gostou do projeto? 

Para apoiar, acesse o link evoe.cc/casanem

Ou entre em contato com: colleavelarcontato@gmail.com

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Neuza Nascimento
Após ser empregada doméstica por mais de 40 anos, Neuza fundou e dirigiu a ONG CIACAC durante 15 anos. Hoje é estudante de Jornalismo e trabalha com escrita criativa, pesquisa de campo e transcrições. No Lupa do Bem, é responsável por trazer reflexões e histórias de organizações de diferentes partes do Brasil para a "Coluna da Neuza".
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