Combate à violência de gênero precisa incluir mulheres e meninas com deficiência
Movimento Inclusivass luta por direitos e fortalece o debate sobre gênero e deficiência
As mulheres e meninas com deficiência são as maiores vítimas de violência doméstica no Brasil. Os números são alarmantes: segundo dados do SISAN, elas são três vezes mais afetadas em relação às mulheres sem deficiência e representam 61% dos casos entre as pessoas com deficiência. Porém, poucas são as ações e políticas públicas de combate à violência de gênero voltadas para elas.
Para dar visibilidade ao problema e garantir direitos, o Movimento Inclusivass lançou o Guia de Enfrentamento à Violência contra Mulheres e Meninas com Deficiência. O guia traz uma série de informações sobre as diferentes formas de violência e indica as melhores maneiras para combater e denunciar as agressões. Principalmente, ajuda as vítimas a identificarem que estão sendo violentadas.
Segundo Carol Santos, fundadora do movimento e uma das idealizadoras do guia, muitas mulheres sentem dificuldade em reconhecer que estão sofrendo violência. Isso acontece porque muitas vezes o agressor é o único cuidador da vítima. As mulheres também podem se sentir culpadas pela violência ou ainda temer pela sua segurança e de suas crianças.
Além disso, quando elas reconhecem que sofreram violência, encontram barreiras na rede de enfrentamento para fazer a denúncia. As dificuldades vão desde a falta de acessibilidade nas delegacias até o despreparo dos servidores em receber a denúncia. O capacitismo, sobretudo, desqualifica e estigmatiza essas mulheres.
Luta anticapacitista
Capacitismo é o nome que se dá ao preconceito contra as pessoas com deficiência. Esse preconceito parte da noção equivocada que associa a capacidade de trabalhar, estudar, ou mesmo de se relacionar afetivamente ou cuidar dos outros, por exemplo, com a estrutura do corpo.
Quando dizemos que alguém é capacitista, portanto, é porque tende a acreditar que pessoas com deficiência são incapazes e inferiores. No Brasil, segundo dados do IBGE, são 19 milhões de pessoas com deficiência. O capacitismo é o principal fator que dificulta que essas pessoas possam garantir sua plena cidadania.
Quando o assunto é violência de gênero, então, o capacitismo torna os corpos com deficiência ainda mais vulneráveis. Segundo Carol, “muitos acham que as mulheres e meninas com deficiência são assexuadas, por outro lado, acreditam que esses corpos podem ser violados”. Por isso, explica, é importante que o recorte de gênero e deficiência seja levado em conta na hora de reivindicar demandas e propor alternativas de convivência.
“Reconhecer-se como mulher e depois como mulher com deficiência é fundamental nesse processo”, afirma Carol. Ela mesma demorou para perceber a importância disso. Carol é uma sobrevivente do feminicídio. Apesar de estar aqui para contar sua história, assim como a maioria, também teve um desfecho trágico.
Ela estava com seu companheiro quando foram baleados pelo ex-namorado de Carol. O companheiro morreu e ela tornou-se cadeirante. Durante anos, ela se culpou por isso. Somente após ter contato com o feminismo, recorda-se, percebeu que não teve qualquer responsabilidade pelo ocorrido. Na verdade, ela foi vítima de um crime marcado pela misoginia e machismo.
Gênero e deficiência
Carol Santos mora na periferia de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ela era uma ativista da acessibilidade quando conheceu o movimento de mulheres Coletivo Feminino Plural. A partir desse encontro, foi convidada a participar do primeiro seminário de políticas públicas para as mulheres com deficiência do estado, em 2014.
“Naquele seminário, elaboramos uma carta. Ali surgiu a vontade de pensar num movimento”, diz Carol. Desde então, o Movimento Inclusivass vem se fortalecendo e participando ativamente do debate político sobre os direitos das mulheres e meninas com deficiência.
Suas integrantes participam de campanhas, fóruns de discussão e de conselhos municipais e estaduais. E enquanto coletivo, já elaboraram diversos documentos sobre gênero e deficiência que dão suporte para a formação de políticas públicas locais e nacionais.
Para Carol, o grande êxito do Movimento Inclusivass foi dar visibilidade para a questão de gênero e deficiência. “Enquanto movimento feminista, nós ampliamos a interseccionalidade, incluímos as mulheres e meninas com deficiência. Ao mesmo tempo, levamos os direitos das mulheres para dentro do movimento de pessoas com deficiência”, afirma.
Corpos em disputa
As mulheres e meninas com deficiência sofrem micro violências diárias em detrimento do gênero. Há desde o julgamento preconceituoso de que uma mãe com deficiência não consegue cuidar dos próprios filhos até a visão distorcida de que alguém jamais seria capaz de cometer um ato de violência contra elas por conta de seus corpos. Como lembra Carol, “o papel social que recai sobre as mulheres com deficiência é o de ser cuidada, e não de cuidar.”
O capacitismo, mais uma vez, esconde o alcance e o impacto dessas violências. Pessoas com e sem deficiência são igualmente humanas, alerta Carol, e podem ter atitudes que nem sempre são éticas e complacentes. Um homem com deficiência, por exemplo, também pode ser violento. Do mesmo modo, uma mulher com deficiência não está protegida contra agressões por conta de sua condição.
A violência de estado, ressalta Carol, gera impacto igualmente. A falta de políticas públicas que contemplem esse debate é notória e pode ser facilmente diagnosticada pela invisibilidade da violência sobre esses corpos e pelas dificuldades de inclusão e acessibilidade em todo o país.
Pensando nisso, o Movimento Inclusivass também lançou o Minidicionário Anticapacitista com Perspectiva de Gênero. O documento inova ao alertar sobre falas e atitudes preconceituosas do cotidiano e orientar para uma educação feminista e anticapacitista. Um dos verbetes, por exemplo, diz que tratar essas mulheres como heroínas ou exemplos de superação não é o mesmo que ter empatia por elas.
Comentários como esses, apesar de parecerem gentis, na verdade escondem as barreiras que essas mulheres precisam enfrentar devido à falta de políticas públicas que garantam as mesmas oportunidades para elas em relação ao resto da população.
Histórias Contadas
“Nós fazemos parte do universo das pessoas com deficiência, mas somos mulheres, e quando falamos mulher com deficiência, sabemos toda a bagagem que carregamos”, explica Carol sobre a importância do debate levantado pelas Inclusivass.
O coletivo conta atualmente com seis integrantes e vem recebendo apoio de entidades filantrópicas e privadas com foco nas mulheres, como o Fundo Elas+, que desde 2016 apoia os projetos criados pelo movimento. O Instituto Avon também foi um importante parceiro, apoiando o primeiro projeto do coletivo. Além disso, Carol é uma revendedora Avon e se tornou embaixadora do Instituto no enfrentamento à violência contra as mulheres. Ela também concorreu ao Prêmio Inspiradoras, em 2021.
A história de vida de Carol já foi documentada em filme e serve de ponto de partida para muitas ações do coletivo. A mais recente é o projeto Histórias Contadas, que traz depoimentos de sobreviventes do feminicídio. “Muitas sobreviventes se tornam mulheres com deficiência, como no meu caso. E transitar neste lugar de sobrevivente nos traz a invisibilidade. Eu sobrevivi a uma violência e continuo sofrendo violência até hoje, pela sociedade, pelo estado, isso em pleno século 21!”, desabafa Carol.
O feminicídio é um crime cometido contra mulheres, motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero. A maior parte desses crimes é praticada por homens que vivem ou viveram com a vítima, sendo namorados, parceiros sexuais ou maridos. E quando uma mulher sobrevive ao feminicídio, isso gera um impacto profundo na intimidade, causando um trauma permanente, alerta Carol.
Feminicídio e combate à violência doméstica
Sobreviver a uma tentativa de feminicídio gera danos físicos, com cicatrizes e marcas permanentes nos corpos das vítimas. Mas, além disso, há os danos invisíveis, que podem ser cicatrizes psicológicas e emocionais, marcando as vidas dessas mulheres para sempre. As sobreviventes de feminicídio convivem, assim, com a autodepreciação, a sensação de abandono e o temor pela própria vida e pela vida de novas parcerias afetivas e de filhos e filhas.
As sobreviventes também têm que lidar com diversas faltas: de acolhimentos adequados, de casas abrigo e de atendimento terapêutico especializado gratuito, independente da situação social, diz Carol. Para ela, o estado falha porque não consegue dar suporte a essas mulheres, e o movimento social acaba fazendo esse papel.
O projeto Histórias Contadas, portanto, é pioneiro ao jogar luz sobre os traumas deixados pela violência doméstica, sobretudo o feminicídio. O projeto também faz um mapeamento das organizações de mulheres no estado do Rio Grande do Sul que prestam assistência a esses casos. A expectativa é lançar um livro com esse mapeamento e os depoimentos em breve.
O livro contará com prefácio de Márcia Tiburi, parceira do Movimento Inclusivass pelo Levante Feminista Contra o Feminicídio, que incluiu recentemente no seu manifesto as sobreviventes de feminicídio como parte do debate a ser incluído. Carol mostra, assim, que não se intimida com sua trajetória. Ao contrário, o ativismo ocupa um lugar central na sua vida. “Nós ainda vamos escrever a vertente das mulheres com deficiência na luta feminista”, finaliza. Que assim seja!
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