Documentário “Comeplexos”: comunicação é identidade
O documentário Complexo busca mostrar diferentes olhares das comunidades do Rio de Janeiro pelos próprios moradores.
Crédito: Bombozila/Divulgação
Por: Gabriel Murga / Lupa do Bem – Favela em Pauta
Realizado pelo coletivo audiovisual “Cafuné na Laje”, o filme aborda vivências e os desafios de artistas e realizadores de favelas cariocas e estreou no dia 29 de julho na plataforma gratuita de streaming Bombozila
O filme é uma parceria entre a Aliança Midiativista Anti-Racista (ARMA Alliance, Finlândia) e a Cafuné na Laje (Rio de Janeiro), coletivo audiovisual do bairro da Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro, que estreou no dia 29 de julho na plataforma de streaming conhecida como a “Netflix das lutas sociais”, a Bombozila.
“Complexos” foi produzido tendo como base da pesquisa de doutorado de Leonardo Custódio, sobre a relação entre midiativismo e arte nas favelas do Rio de Janeiro, abordando as vivências de realizadores que se propõe a disputar narrativas e construções sobre os lugares onde nasceram, vivem e muitas vezes onde produzem seu trabalho artístico.
O documentário foi exibido no maior festival sobre cinema latino-americano da Suécia, o Panoramica e durante seus 26 minutos aborda questões que permeiam suas trajetórias, seus cotidianos e seus fazeres propondo uma narrativa que busca por diferentes olhares apresentar diferentes vidas nas favelas do Rio de Janeiro, a partir de seus próprios moradores. A câmera a serviço da narração permanece aberta às influências e características próprias do lugar de cada entrevistado assim como dos elementos rítmicos que compõem a sonoridade das favelas.
No comunicado de imprensa divulgado pela plataforma de distribuição de documentários, Bombozila destaca-se que “A ideia é que essas falas apresentem – seja para o campo acadêmico, artístico ou até mesmo no âmbito das políticas públicas – possibilidades de trajetórias de moradores de favelas que favoreçam na desconstrução dos estigmas ligados à representação da favela e de seus moradores”.
David Amen, Grafiteiro (Foto: Bombozila)
As entrevistas se passam em lajes, bares, praças e em locais habituais partes do ambiente cotidiano das favelas na cidade do Rio de Janeiro. Este ambiente por vezes mescla-se com os protagonistas e suas histórias que vão sendo apresentadas por suas próprias vozes.
“A importância do filme está nas pessoas que são abordadas e suas trajetórias. São pessoas que realizam e disputam o significado do que é viver em favela, expondo o quão diversas são essas vidas. E sobre o que a narrativa ajuda a contrapor, é nos alertar que infelizmente, por mais belas que essas trajetórias sejam, por mais importante que sejam esses olhares e existências, esses artistas, realizadores, comunicadores são exceções que confirmam a regra excludente no qual a sociedade brasileira está inserida. Não é apenas a favela que perde com essa exclusão, todos nós perdemos enquanto sociedade com o racismo e a política de morte no qual os espaços que essas pessoas retratadas no filme cresceram e vivem até hoje”, afirma JV Santos, realizador em Cinema e Audiovisual e co-fundador da “Cafuné na Laje”, uma das produtoras do documentário.
Para o pesquisador Leonardo Custódio, “O midiativismo, como as pessoas falam no cotidiano, está dentro daquilo que a gente considera um exemplo de comunicação popular. A comunicação popular é o uso dos meios disponíveis por pessoas que habitam, por exemplo nas periferias e favelas, para se comunicar um com o outro e para se comunicar com a sociedade. E isso é um fenômeno que acontece desde que a periferia é periferia. A construção de narrativas feita por moradores de favelas e periferias, ela está dentro dessa ideia de que o que é dito sobre nós não condiz com a nossa realidade, complicada, complexa, cheia de nuances e a gente precisa contar outras coisas que nos definem e uma forma de apoiar essas narrativas é assistir, acessar, compartilhar essas narrativas”, apontou Custódio, natural de Magé, na baixada fluminense.
Participam do documentários os seguintes artistas, fotógrafos, agitadores culturais e comunicadores, das favelas do Complexo do Alemão, Jacarezinho e Complexo da Maré: Gizele Martins, Naldinho Lourenço, David Amen, Mc Martina, Thaís Alvarenga, Léo Lima (que conduz as entrevistas), Rodrigo Maré Souza, Geandra Nobre, Wallace Lino. O argumento é de Leonardo Custódio e Jv Santos, que também assina a direção do documentário.
Entrevistamos o pesquisador Leonardo Custódio e você confere nossa conversa sobre comunicação popular nas favelas e periferias em especial sobre essa realidade na cidade do Rio de Janeiro, mas que se reflete em todas as regiões do nosso país:
O que é midiativismo em sua visão? E como ele pode impactar na vida das pessoas?
Na verdade, para esclarecer o midiativismo ele é um conceito teórico, ele nada mais é do que uma lente abstrata, por assim dizer, que ajuda você entender coisas que acontecem na sociedade, né no caso da Sociologia, das Ciências Sociais que é onde eu estou. Na verdade, o midiativismo, assim como as pessoas no cotidiano falam, está dentro daquilo que a gente considera um exemplo de comunicação popular. A comunicação popular é o uso dos meios disponíveis por pessoas que habitam, por exemplo nas periferias e favelas, para se comunicar um com o outro e para se comunicar com a sociedade. E isso é um fenômeno que acontece desde que a periferia é periferia. A construção de narrativas feita por moradores de favelas e periferias, ela está dentro dessa ideia de que o que é dito sobre nós não condiz com a nossa realidade, complicada, complexa, cheia de nuances e a gente precisa contar outras coisas que nos definem e uma forma de apoiar essas narrativas é assistir, acessar, compartilhar essas narrativas.
Como se apropriar e fazer parte destes processos de comunicação?
Quando você tem processos de comunicação popular ou de midiativismo, como no meu trabalho, você tem pessoas basicamente tentando usar meios de comunicação disponíveis, impresso, rádio, audiovisual fotografia, arte, teatro, cinema, enfim para poder criar narrativas que se comunicam entre si, entre as pessoas que moram nesse lugar no caso específico da periferia e com a sociedade, com pessoas que vivem fora desses lugares. E essa comunicação é fundamental para, por exemplo, a manutenção da memória social.
Como as narrativas periféricas podem mudar a visão das pessoas sobre as favelas e as pessoas que ali vivem?
A favela na história oficial do Brasil sempre foi definida pela pobreza e pela violência. Se você pegar o que é construído no cotidiano das grandes mídias e só com essa narrativa para tentar entender o que é favela, a favela é violência, a favela é pobreza. E aí quando pessoas da favela pegam os meios de comunicação e falam: Não. Olha só: Tem cultura aqui, tem música aqui. Escuta nossa música. Presta atenção na nossa história. Olha essa fotografia, essa aqui é a primeira moradora da favela. Essa favela foi constituída por pessoas que vêm do Nordeste, por pessoas negras etc. Quando você tem essas pessoas fazendo isso, elas estão falando que a favela não é só isso que definem a partir de fora da gente. Então manutenção de memória é isso. Construção de uma identidade. O que faz com que determinadas pessoas de uma determinada favela ou de um lugar periférico específico se identifiquem como membros daquele lugar.
Essa construção da identidade e a manutenção da memória das próprias favelas tem influência na forma como os moradores e a própria comunicação popular são percebidos dentro destes espaços?
Abraçar a ideia de que morar na favela é uma fonte de orgulho também né e isso é fundamental a partir da comunicação. Ou seja, a comunicação, midiativismo, comunicação popular seja lá qual for o termo que use mas a comunicação feita por pessoas que moram na periferia ela é fundamental para a existência de espaços onde vozes dessas periferias que normalmente não aparecem em outros espaços, possam circular e construam esses significados todos. Esses sentidos todos relacionados a o que é que significa morar naquele espaço. Então se nós como seres humanos não existimos sem comunicação, a própria ideia de que eu sou brasileiro só existe porque a gente comunica o que é ser brasileiro. Uma coisa que eu acho bem bacana, que por exemplo, o jornal Cidadão, da Maré que a Gizele Martins descreve no filme “Complexos” foi o responsável pela construção da ideia de ser mareense. Não é só favelado. Você tem a ideia de construir de que “favelado” é uma coisa boa, não é uma coisa ruim, mas também ser Mareense, que faz com que a gente que mora nessa favela seja diferente por exemplo, de pessoas que moram no Complexo do Alemão.
Como você percebe esse fluxo de comunicação e arte das periferias “para fora” e como quem está nesses espaços pode apoiar essas iniciativas?
Quando, por exemplo, a música favelada contribui muito, principalmente por muito tempo, primeiro com o samba, o funk depois, contribuem para que as pessoas vejam a favela de uma forma diferente. E não basta só, a pessoa que canta, cantar. Essa música tem que circular, ela precisa estar na rádio, tem que ser ouvida e a mesma coisa com a comunicação popular, com o midiativismo de favela. A pessoa produziu conteúdo, se a pessoa sabe que esse movimento de construção de narrativa acontece, uma forma de apoiar é tocar para frente. Tem uma comunicação feita na favela que é muito importante dar uma olhada. Com as redes sociais isso é muito fácil de fazer. A gente vê isso aí por exemplo, alguns movimentos que têm mais visibilidade, por exemplo, o jornal “Voz das Comunidades”, no Complexo do Alemão, o trabalho fotográfico de tantos fotógrafos de favela circulam, por quê? Porque as pessoas compartilham, botam isso pra rodar e tudo mais. Isso é uma forma de apoio: compartilhar. Outra forma, contribuir para o financiamento destas atividades, quando por exemplo alguma galera cria uma campanha de financiamento online, chegar e somar com algum valor que seja possível, contribuir para que esse trabalho se mantenha. Se o material é vendido, comprando. Obviamente que eu estou falando aqui de pessoas que moram fora de favela, que têm acesso a outros espaços, e assim gradualmente essas narrativas vão se transformando.
Ficha Técnica: “Complexos”
Lançamento: 29/07/2021
Disponível gratuitamente em: Bombozila.com
Produção: Mariluci Nascimento
Assistente de Produção: Jonas Rosa
Fotografia: Léo Lima e Jv Santos
Câmera Adicional: Gê Vasconcelos
Som: Jonas Rosa
Som Adicional: Luciano Dayrell
Montagem: Jv Santos – Jonas Rosa
Edição: Jonas Rosa
Trilha Sonora: Joca
Produção de Finalização: Jv Santos
Cartazes e Videografia: Renato Cafuzo
Legendas: Caroline Vicente
Tradução: Clara de Carvalho