Projeto surgiu no interior do Maranhão em 2017 e hoje está em diversas comunidades do país
Situado no interior do Maranhão, entre Vargem Grande e Cantanhede, nos limites da Amazônia e do Cerrado, está o Quilombo Rampa, um território quilombola de mais de 200 anos. Certificado pela Fundação Palmares há cerca de duas décadas, a luz elétrica chegou ao território apenas em 2004 e a internet, em 2017. É de lá que vem a Rádio e TV Quilombo, o primeiro meio de comunicação quilombola do Brasil.
O uso da tecnologia ancestral, como refere-se Raimundo Leite aos equipamentos que eles próprios criam, é o que diferencia a iniciativa. “Nós adaptamos a tecnologia moderna para nossa realidade. E para cada necessidade vamos buscando uma alternativa a partir da própria comunidade, principalmente relacionada à natureza. Foi assim que criamos o Bambu Drone, que é um dos materiais mais incríveis do projeto. Com ele, nós conseguimos fazer imagens aéreas, principalmente das rodas de tambor, nossa maior manifestação cultural”, comenta Raimundo.
De celulares a tablets e microfones, os equipamentos se misturam com engrenagens naturais, dando o aspecto ancestral. “Também queríamos trazer essas reflexões, de que a tecnologia está acessível nas comunidades a todo momento. Ou seja, ela é usada pelas comunidades ainda hoje, mesmo com tanta modernidade”, defende.
Tecnologia ancestral
Tudo começou em tom de brincadeira. Com uma câmera de papelão, um tripé de bambu e um microfone de graveto, Raimundo Leite e seu primo William Cardoso começaram a Rádio e TV Quilombo, em 2017.
“Começamos a fazer reportagens nos campos de futebol, de forma bem descontraída e usamos a câmera de papelão para nos aproximar daquilo que mais queríamos, que era criar uma TV na comunidade. A partir daí, essa câmera virou uma potência nas nossas mãos”, recorda-se Raimundo.
Com tecnologia feita a partir da natureza e muita criatividade, o que parecia brincadeira tornou-se uma iniciativa profissional reconhecida nacionalmente. “Por mais que parecesse brincadeira para os outros, para nós era algo muito sério. Mostramos no dia a dia que isso era possível. O tripé de bambu, a câmara de papelão e o bambu drone funcionavam na prática.”
Rádio e TV Quilombo
Hoje a rádio tem sua própria estação FM e transmite para todo país pelo Google Play Store. A TV faz reportagens em vídeo e divulga pelas redes sociais. A ideia principal é contar — ou não — suas próprias histórias, como diz Raimundo.
“Mais importante do que o que se mostra é aquilo que se esconde. Por que ainda que seja um projeto de comunicação, muito focado nessa questão de dar visibilidade, com vídeos e fotos, tem coisas que não podem ser mostradas. Então nós também trazemos essa dimensão de que as comunidades quilombolas têm pessoas, tempos e espaços sagrados que não devem ser visibilizados.”
As histórias são contadas no ritmo que a comunidade propõe. A equipe também dá suporte para comunidades indígenas. Ano passado estiveram em um encontro em Manaus. No início do ano, fizeram seu próprio encontro, que juntou quase 70 comunicadores populares no território. A Rádio e TV Quilombo já fez parcerias com comunidades da Bahia, Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro. Recentemente, estiveram no Quilombo Kalunga, em Goiás, dando suporte à Rádio Kalungueira.
Quilombo Rampa
Raimundo recorda-se, entusiasmado, como a comunidade abraçou a ideia de fazer uma comunicação adequada à realidade local. “Tudo que se via sobre comunidades quilombolas no Brasil era feito por alguém de fora. As monografias, TCCs para a faculdade, as reportagens… Não havia uma comunidade falando de si própria. A partir do momento que começamos, lá em 2017, conseguimos desmistificar várias histórias sobre nós.”
“Nosso objetivo não é fazer uma contra narrativa, mas a narrativa do que é real, do que existe na comunidade, a história como ela é e contada por quem tem que contar. Nosso projeto nasce com esse diferencial, de não se curvar ao que a mídia tradicional impõe, nem ao jeito que ela trabalha. Nós temos autonomia, fazemos aquilo que tem que ser feito a partir do nosso próprio jeito de olhar”, continua.
“Em 2018, faríamos 200 anos de território quilombola. Com a TV, queríamos registrar esse momento histórico, para nós e outros quilombolas que eram da comunidade, mas estavam morando em outras regiões. Pouco a pouco, fomos tendo contato com outras comunidades, pessoas mais de longe. E várias televisões quiseram falar sobre o nosso projeto. Chegamos a passar em rede nacional, na Globo. Fomos no Luciano Huck”, orgulha-se.
Juventude quilombola
O território Rampa possui cerca de 500 pessoas, morando em quatro comunidades certificadas e outros povoados menores. Somente no Quilombo Rampa, onde Raimundo nasceu, são 270 pessoas.
Formado em geografia pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e cursando o mestrado em estudos africanos e afro-brasileiro na Universidade Federal do Estado (UFAM), ele conta que virou repórter, locutor, cinegrafista, diretor e tudo mais que se imagina relacionado à comunicação aprendendo na prática.
Cerca de 60 jovens estão envolvidos no projeto. Há várias parcerias dentro e fora da comunidade. Uma delas é a Medonha Tranças. “A Rádio e TV Quilombo veio para nos fortalecer”, diz Mary de Jesus, que fundou o coletivo de trancistas junto com mais três mulheres. Há também uma biblioteca comunitária e a expectativa de criar uma cozinha comunitária logo mais.
Essas e outras conquistas são lembradas com alegria por Raimundo. A Rádio e TV Quilombo participou de intercâmbio nos Estados Unidos, a convite da embaixada americana. Também esteve no Fórum Internacional de Internet, realizado no Japão, em 2023, defendendo a democratização da internet nas comunidades.
Ainda participaram da COP 28, em Dubai, levantando a pauta “que as comunidades não são ouvidas do jeito que deveriam”. E Raimundo foi eleito, por votação popular, como um dos jornalistas negros mais admirados do Brasil. “Ficamos entre os 50 jornalistas negros e negras mais admirados do Brasil, por dois anos consecutivos, em 2023 e 2024”, diz.
“Às vezes, não temos dimensão da nossa potência, isso fica perdido dentro de tudo que já fizemos. Mas tornamos coisas que pareciam longe da nossa realidade acessíveis para todo mundo. As gerações anteriores foram primordiais na resistência para que pudéssemos ter acesso a isso hoje”, ressalta.
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