Eu Amo Minha Quebrada: conheça Júlio Fessô e suas ações no Morro do Papagaio, em Belo Horizonte

Depois de idas e vindas do sistema prisional, ele tornou-se uma liderança local influente, alterando a dinâmica social comunitária.

02.08.23

Júlio Fessô é uma referência no Morro do Papagaio, uma das favelas mais antigas de Belo Horizonte (MG), cercada por bairros ricos na zona sul da cidade. Ali ele nasceu e se criou. Dependente químico, também passou pela prisão e após cumprir sua condenação, tornou-se um líder social local. Foi essa trajetória de vida que o levou a criar o Projeto “Eu Amo Minha Quebrada”, em 2013. 

Segundo Fessô, “problemas existem em todo lugar, mas os da favela dão muito ibope”. O projeto surgiu para quebrar esse paradigma. A primeira ação foi oferecer uma oficina de fotografia na comunidade. O objetivo era estimular crianças e adolescentes a registrarem lugares legais da favela e depois divulgar nas redes sociais. 

“Muitos telejornais contribuem com a visão negativa da favela, alguns colocam até trilha sonora de suspense, recortam a matéria várias vezes para prender o público e é muito triste”, diz. Com o tempo, sua ideia foi crescendo e se diversificou para outras áreas: empreendedorismo, esporte, cultura, lazer, assistência social e saúde.

As novas ações geraram visibilidade da mídia, fazendo com que alcançasse seu grande objetivo: “queria mostrar a favela como ela é e com isso, mudar a realidade da comunidade. E nós acabamos virando referência na mídia nacional e internacional”, recorda-se. 

Morro do Papagaio, Belo Horizonte – Minas Gerais. Imagem: reprodução.

Do sistema prisional para liderança local 

Segundo Júlio Fessô, sua passagem pelo sistema prisional o motivou a apostar em ações sociais para transformar a comunidade. A superação dos desafios, no entanto, não deve ser romantizada. Houve muita dor e sofrimento nesse caminho:

“Aos 12 anos, saí da escola porque tinha que ajudar em casa. Fui trabalhar em uma gráfica e estava indo bem naquele ofício. Mas aos 17 conheci o crack. Pratiquei alguns pequenos furtos para manter o vício e fui preso. Depois, com quase 19 anos fui pego pela polícia novamente. Eles me confundiram com um assaltante de um restaurante, só que não era eu…”, conta Júlio. 

“Fui preso e paguei por isso. Mas saí um pouco chateado do presídio e comecei a aprontar. Depois voltei de novo para prisão, e foi aí que percebi que estava dando murro em ponta de faca. De orgulho da família passei a dar muito desgosto. Minha mãe estava sempre chorando por minha causa, sofrendo muito. Isso contribuiu para que eu repensasse o meu caminho”, continua.

“Também não posso deixar de ressaltar que acabei me convertendo ao cristianismo no presídio. Um cristianismo genuíno, não de aparência e de julgamento. Tem uma parte na Bíblia que gosto muito, que diz que a gente deve fugir da aparência do mal. E, para fugir da aparência do mal, só tem uma coisa, é fazendo o bem. Então, comecei a pensar muito nisso”, lembra. 

Imagem: reprodução.

Fazer o bem faz bem

Júlio Fessô foi e voltou do presídio algumas vezes durante o período de quase nove anos. Na última vez em que esteve preso, saiu de lá com um propósito: transformar a comunidade. Ele começou participando como educador social em programas governamentais e como palestrante motivacional no Tio Flávio Cultural, uma rede que agrega cerca de 70 instituições parceiras com uma equipe de mais de mil pessoas voluntárias.

“Comecei dando palestras em presídios e espaços educativos, contando minha história e minha trajetória. Então eu gosto de dizer que foi a questão da religião e também o amor pela família que me fez virar a chave”, conta. Ao mesmo tempo, ele ia desenvolvendo seus próprios projetos de impacto social. 

“A gente tem muita vontade de fazer acontecer, mas se não tiver apoio, quem nos ajude, a gente acaba andando em círculos. É tudo um processo”, pondera Fessô. Para ele, a corrente do bem existe e é necessária porque ninguém faz nada sozinho: “muitas vezes, sou eu que apareço nas reportagens ou estou nas reuniões, mas por trás tem uma equipe, que, vale ressaltar, é formada principalmente por mulheres. São elas que participam diretamente e indiretamente das ações”, diz.

Júlio Fessô conduz diversas oficinas para crianças e adolescentes. Imagem: reprodução.

Eu Amo Minha Quebrada

Os projetos do Eu Amo Minha Quebrada atingem um público variado. O foco, porém,  são as crianças e adolescentes. “Dizem que as oportunidades estão aí para todos, mas para a criança ou o adolescente da periferia é preciso ultrapassar um buraco para alcançar essas oportunidades. Nossos projetos são como uma ponte entre o sonho e a realidade”, explica Fessô.

Se antes o objetivo inicial era mostrar como a favela é, com o tempo esse propósito se transformou e se multiplicou. Hoje, o Eu Amo Minha Quebrada faz diversas ações como o Projeto Pontapé Inicial, que promove inclusão social através do futebol; há as ações ligadas às datas festivas, como Páscoa, Natal, Dia das Crianças, Dia das Mães, Festa Junina e outros. 

Há ainda a Rua do Livro Morro do Papagaio, um projeto que incentiva a leitura e o Voa, Papagaio!, um cursinho preparatório para as provas do ENEM e ENCCEJA, entre outras, que visa incluir os estudantes em vulnerabilidade social nas universidades. “Eu costumo dizer que aqui nós consertamos o avião com ele no alto”, alerta Júlio. 

Morro do Papagaio
O projeto incentiva a leitura na comunidade. Imagem: reprodução.

Novas tecnologias e mudanças climáticas

Segundo Júlio Fessô, muitos meninos e meninas da comunidade são excelentes no videogame. Pensando nisso, ele conseguiu levar aulas de robótica, tecnologia web3 e criação de software para o Morro do Papagaio. “Nós queremos que os jovens possam criar e vender os jogos. Além deles se divertirem, vão conseguir ganhar dinheiro com isso, igual aos adolescentes de classe média, porque tiveram uma oportunidade”, ressalta. 

Além de pensar na profissionalização dos gamers, Fessô também mira as mudanças climáticas. “Apesar da periferia contribuir pouco com a crise climática, é a população que mais sofre com seus efeitos. Ao mesmo tempo, essa questão não passa de uma notícia no jornal para a maioria das pessoas das comunidades. Então temos trazido essa discussão pra cá, principalmente através dos adolescentes”, reflete. 

Os projetos ambientais são feitos em parceria com ONGs e coletivos como Engajamundo, Global Shapers e Greenpeace. O curso EduClima, por exemplo, promoveu a formação de lideranças jovens pelo clima. Outro projeto voltado à questão climática é o Recicla Kids, que desenvolve educação ambiental para crianças. 

Saiba como os jovens do Engajamundo atuam pela defesa do clima.

Morro do Papagaio
Eu amo minha quebrada oferece cursos gratuitos de web3, robótica e criação de software. Imagem: reprodução.

A favela e a mudança de paradigma 

Todos os projetos realizados pelo Eu Amo Minha Quebrada são facilitados através de voluntariado. As redes sociais são os principais meios para saber o que está acontecendo na comunidade. Quem tiver interesse, pode se voluntariar ou colaborar financeiramente. 

“Nós divulgamos nossas ideias nas redes e as pessoas podem propor oficinas. Mas não adianta trazer algo engessado pra cá. Antigamente, por exemplo, muita gente, principalmente de faculdade, vinha, fazia pesquisas e depois sumia. Então é importante construir junto”, avisa Júlio.

“Nós não fazemos nada sozinhos. E é bom que as pessoas de fora possam contribuir. Além de trazerem recursos, equipamentos, experiências, etc. elas também levam para fora tudo o que viram aqui dentro. Com isso, elas acabam ajudando a quebrar esse paradigma de que a favela é perigosa. Nós só queremos deixar um futuro digno para as nossas crianças e adolescentes”, conclui Fessô.

Quer apoiar essa causa?

O Eu Amo Minha Quebrada é um projeto de impacto social que funciona através de parcerias e doações. Para apoiar e saber mais sobre o projeto, siga as redes sociais no Twitter, Facebook, Instagram e Linkedin.

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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