“A nossa luta é para que não sejamos vistos apenas como uma mão de obra barata ou como os ‘coitadinhos’”

Catadores de materiais recicláveis destacam seu papel crucial na reciclagem e sua importância na implementação de medidas de adaptação climática

13.12.24

De acordo com a última edição do Atlas Brasileiro da Reciclagem, 9 em cada 10 quilos de embalagens recicladas chegam à indústria através do trabalho dos catadores. O Brasil também se posiciona no topo do ranking de países que mais produzem resíduos plásticos no mundo, ficando na quarta posição, precedido pelos Estados Unidos. Ainda assim, o papel dos catadores não têm sua importância amplamente reconhecida. 

Foi para preencher essa lacuna que o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) abriu o G20 Social com um painel dedicado a destacar como o trabalho dos desses profissionais já integra, de forma essencial, os princípios da economia circular e ESG – conceitos, esses, amplamente adotados por grandes empresas e até governos (o Senado aprovou ainda em 2024 o Projeto de Lei que estabelece a Política Nacional de Economia Circular). Essa foi a única atividade proposta por catadores aprovada pelo comitê do G20 Social, na liderança de Carlos Cavalcanti, membro da coordenação nacional do MNCR. 

Com a COP30 em Belém se aproximando no próximo ano e as discussões sobre economia circular e o papel dos catadores ganhando força, espera-se que o Brasil, junto a outras potências globais, inclua esses temas na pauta de ações para adaptação climática. Essa abordagem é urgente, dado que já enfrentamos eventos climáticos extremos em diversas partes do mundo.

Para entender melhor quem são as pessoas que desempenham esse trabalho essencial e a relevância de sua atuação, o Lupa do Bem entrevistou dois catadores que se organizam coletivamente para conquistar melhores condições de trabalho, mais direitos e maior visibilidade para sua categoria. Acompanhe a seguir suas histórias e perspectivas.

Carlos Cavalcanti, 68 anos, Curitiba – PR

LUPA DO BEM: Pode me contar um pouco sobre a sua trajetória? Como você passou a trabalhar como catador?

CARLOS: Eu sou de origem paraibana, mas resido em Curitiba já há pelo menos 40 anos e me tornei catador no ano de 2000. Passei a atuar como catador não por opção própria, mas, sobretudo, por uma necessidade. 

Naquela ocasião, não conseguia enxergar outra oportunidade. Não conseguia me colocar no mercado de trabalho. A única opção que tive foi me tornar catador. 

Me tornando catador, trabalhando de forma individual, conheci um pessoal ligado à Igreja que desenvolvia um trabalho voltado para economia solidária e fui incentivado a trabalhar de forma associada. 

É aí que começa minha trajetória com a Economia Solidária, com o Movimento Nacional de Catadores, e aí eu fui tomando consciência de que é muito mais vantajoso trabalhar de forma associada e buscar outros caminhos do que ficar preso a uma atividade de forma individual.

LUPA DO BEM: Queria que você me explicasse como funciona o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis e também como foi o processo para começar a fazer parte desse grupo?

CARLOS: Com o tempo, fui me conscientizando de que minha atividade como catador não era apenas uma forma de sobreviver. Percebi que o que fazia também tinha um impacto significativo para a sociedade e, especialmente, para o meio ambiente. 

Isso me levou a me dedicar cada vez mais ao trabalho de catação, buscando formas de me profissionalizar. Não me via mais apenas como catador, mas como um catador militante. 

O Movimento Nacional de Catadores surgiu em 2001, mas antes disso, as cooperativas COOPAMARE e ASMARE já eram referências importantes na organização dessa categoria. 

A partir desse processo de organização, o Movimento Nacional de Catadores foi constituído. Em minha trajetória, percebi que era uma oportunidade de dar visibilidade a esse trabalho. 

No início de 2005 ou 2006, participei do segundo encontro latino-americano, realizado em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, como liderança do movimento no Paraná. A partir desse momento, passei a integrar também a Comissão Nacional de Catadores, o coletivo que coordena o Movimento Nacional de Catadores.

LUPA DO BEM: E qual você diria que é o principal objetivo do Movimento Nacional de Catadores?

CARLOS: Eu costumo dizer que a nossa luta é a luta pelo direito a ter direito. Ou seja, a existência do Movimento Nacional de Catadores trouxe visibilidade a essa categoria, que antes era muito mais invisível do que é hoje. 

O movimento busca construir políticas públicas que realmente destaquem essa categoria, tornando sua atividade mais consolidada e estabelecendo direitos por meio de uma política pública eficaz.

A nossa primeira grande conquista como grupo ocorreu em 2002, quando conseguimos o reconhecimento da CBO (Classificação Brasileira de Ocupações). Ser catador passou a ser reconhecido como uma ocupação profissional, assim como qualquer outra no Brasil. 

Desde então, temos trabalhado para estabelecer um diálogo com os governos, em diversas esferas – federal, estadual e municipal – para fortalecer a presença dos catadores no sistema de limpeza urbana, especialmente através da coleta seletiva.

LUPA DO BEM: Agora eu queria que você contasse um pouco também sobre como foi que surgiu essa ideia do painel para o G20 Social? 

CARLOS: O evento do G20 Social no Brasil é um momento crucial, não apenas para os catadores, mas para toda a sociedade brasileira. A oportunidade que os movimentos sociais e outras organizações tiveram para expressar seus posicionamentos e necessidades para o mundo é de suma importância.

Quando soubemos da possibilidade de sugerir atividades autogestionadas para o G20 Social, o Movimento Nacional de Catadores decidiu que era essencial participar desse momento. Fiquei encarregado de fazer a inscrição. 

O tema da nossa atividade foi discutir a importância dos catadores dentro da economia circular e também em relação às políticas de ESG (Governança ambiental, social e corporativa). 

Nosso objetivo era debater como os catadores são elos fundamentais para a implementação dessas políticas, considerando que, na prática, já desempenham esse papel. 

A nossa luta é para que não sejamos vistos apenas como uma mão de obra barata ou como os ‘coitadinhos’. Queremos ser reconhecidos como um elo importante, como prestadores de serviços essenciais nessas políticas.

Maria José de Oliveira Santos, 52 anos, Curitiba – PR

LUPA DO BEM: Me conte um pouco sobre a sua trajetória? Como começou a trabalhar como catadora? 

MARIA: Eu comecei na reciclagem com 10 anos, por pura necessidade. Sou filha trigêmea, com outros dois meninos, e, na época, por muita necessidade, passando fome, fomos para a rua com o carrinho trabalhar. 

Não era tanto pelo valor do material, mas para conseguir uma cesta básica, roupas, um calçado. Quando me tornei adulta, continuei na reciclagem porque comecei a amar meu trabalho, porque peguei amor naquilo. 

Sou uma pessoa que sempre trabalhou muito na luta, na área da reciclagem, sou mãe de três filhos, avó de uma menina e um menino. E quanto ao que eu faço nas minhas horas livres… eu só trabalho. Porque, quando estou no meu trabalho, já estou me divertindo e trabalhando, porque amo o que faço. 

Eu brinco que quando conheci a reciclagem, me apaixonei. Só que a paixão é passageira, hoje eu amo de verdade. Gosto muito do meu trabalho. Hoje somos em 30 pessoas na cooperativa e passamos mais tempo aqui dentro do que em nossas próprias casas.

Infelizmente, as pessoas não separam o material corretamente. O material é muito sujo, e a gente faz porque ama. 

LUPA DO BEM: E por que você acha que você ama tanto a reciclagem? De onde veio esse amor? 

MARIA: Foi isso daí que não me deixou morrer de fome, que ajudou na casa da minha mãe, que criou meus filhos e meus netos também. Então eu me identifiquei muito. 

Eu sempre falo que quando nós nascemos, Deus dá um dom para cada um. E eu tenho certeza de que eu já nasci para isso, porque eu amo demais. Já tive oportunidade de ter outros empregos, mas eu não saio daqui. Tenho 40 e poucos anos de catadora. 

LUPA DO BEM: Me conta um pouco sobre a cooperativa que você trabalha? 

MARIA: A cooperativa se chama CATAMAR e vai completar 19 anos agora em dezembro. A gente era um grupo chamado “Lixo e Vida”, e, a partir dessa união, surgiu a CATAMAR, que é uma cooperativa. 

Depois que eu entrei para a cooperativa, minha vida melhorou muito. Eu trabalhava 18 horas por dia e, quando ia vender o material reciclado, ganhava entre R$20,00 e R$30,00. 

Na cooperativa, o valor que a gente deixa, a gente ganha. Aqui não tem enganação, todo mundo recebe igual, porque trabalhamos de forma coletiva. Hoje, costumo brincar dizendo que, se um dia fui pobre, agora sou milionária. 

Atualmente, meus filhos e netos têm camas boas para dormir, coisa que eu não tinha. Eles têm uma TV para assistir, que também não tinha, e os armários estão sempre cheios de comida.

LUPA DO BEM: Tem se falado bastante sobre a importância do trabalho dos catadores, mas ainda assim, existem lacunas. Na sua opinião, o que ainda falta por parte de governos, empresas e da sociedade civil? 

MARIA: Por parte dos grandes geradores de resíduos que jogam no meio ambiente, tem que ter mais fiscalização. Acho também que cada empresa deveria nos pagar pelo trabalho que fazemos ao recolher resíduos da natureza, né? 

Mas o que acontece é que, muitas vezes, os recursos passam por várias mãos antes de chegarem a nós, e quando chegam, metade já ficou com os outros. Deveria ser algo direto, um contrato entre as empresas e as cooperativas.

Sobre os carrinheiros que não estão vinculados a cooperativas, eles não recebem nada do município. Trabalham debaixo de sol, chuva, limpando a cidade de graça, e não são valorizados. 

Fico triste porque já fui carrinheira, e sei como é humilhante. A própria sociedade desrespeita, buzinam, xingam, dizem que atrapalhamos o trânsito. Acho que os municípios precisam olhar para isso também.

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Fabiana Rosa
Jornalista e assessora de imprensa, Fabiana é Coordenadora de RP na Sherlock Communications e é responsável por liderar toda a equipe do Lupa do Bem.
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