Revista Periferias completa seis anos produzindo e divulgando conhecimento no Conjunto de Favelas da Maré, Rio de Janeiro

Através de uma rede internacional, publicação coloca em evidência as potências periféricas do Sul Global.

07.06.23

A Revista Periferias surgiu para mostrar que a periferia é, sobretudo, um espaço de produção de conhecimento. Sua sede está localizada no Complexo da Maré, o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro. São 16 favelas no total, com uma população de 140 mil habitantes. 

Com tantos moradores, há inúmeras possibilidades de referir-se à região. Porém, o mais comum é que seja retratada sempre a partir da ausência e de outras classificações negativas e preconceituosas. Assim, para disputar essas narrativas e apontar outras representações, a revista articula pensadores e pensadoras dentro e fora do território. 

A primeira edição foi publicada em 2018, com o tema Paradigma da Potência e trouxe contribuições de Ailton Krenak, Bira Carvalho e Udi Mantel Butler. Apresentando a “Carta da Maré, um manifesto das periferias”, a publicação deixa claro a sua proposta: combater discursos que legitimam a desumanização de grupos sociais que moram em territórios populares.

Maré Festival Periferia Tem Potência. Instituto Maria e João Aleixo – IMJA. Reprodução.

Marcações simbólicas

A melhoria dos meios e condições de existência de territórios populares dependem de mudanças nas marcações simbólicas”, escrevem os editores da Revista Periferias, Fernando Fernandes, Jailson de Souza e Silva e Jorge Barbosa, na primeira edição. 

“Essas mudanças, no entanto, não se realizam através de estéticas e habitabilidades dominantes, mas com o reconhecimento do poder criativo das populações que habitam territórios marcados pela desigualdade”, dizem eles.

Nas sete edições que já foram lançadas desde 2018 foram abordados temas como racismo, democracia, saúde pública, educação e experiências alternativas em territórios populares. Todas as publicações estão disponíveis na íntegra e de forma gratuita na internet. As edições são semestrais e os textos são traduzidos para inglês, espanhol e francês, movimentando dessa forma uma ampla rede de produção de conhecimento a partir de periferias em todo mundo. 

Por meio de entrevistas, artigos, narrativas e ensaios fotográficos, entre outros, a revista mostra a que veio: as publicações são acessadas em 150 países, e já somam mais de 600 mil visualizações.

 

Revista Periferias. Edição número 1. 2018. Reprodução.

A periferia produz e consome conhecimento   

Segundo Daniel Martins, editor executivo da Revista Periferias, a publicação surgiu para disputar o campo das narrativas. Por isso, avisa, muitos textos podem ser densos e com linguagem acadêmica. “A revista não é um blog. Então, existe um tom acadêmico, mas não apenas”, diz.

A sexta edição, por exemplo, publicou uma entrevista com Hédio Silva Jr., um grande jurista negro, que foi sondado recentemente para assumir uma das vagas do STF. “A entrevista dele é para pessoas do mundo jurídico, mas nós não abrimos mão de publicá-la porque ele é uma figura importantíssima”, explica.   

Já na última edição, Desaprisionar o Cárcere, foi publicado um texto de Amabílio Gomes. Morador da Maré, Amabílio ficou preso por dez anos e agora está em liberdade. E escreveu um texto na Revista Periferias sobre racismo e prisão que tornou-se um dos mais lidos da edição. 

“Eu recebi uma mensagem muito afetuosa dele, agradecendo pelo convite e pelo espaço de publicação, porque no texto ele trata exatamente dessa dificuldade, de uma pessoa de origem nordestina, negra, e egressa da prisão, de ter uma nova perspectiva ”,  conta Daniel.

Revista Periferias
Lançamento do livro Pesquisadoras da Educação na Escola Pública. IMJA. Reprodução.

Rede Internacional de Periferias

A Revista Periferias é resultado de um projeto inovador desenvolvido pelo Instituto Maria e João Aleixo (IMJA), fundado em 2017 por duas organizações de base tradicionais da Maré: o Observatório das Favelas e a Redes da Maré, ambas atuando há mais de 20 anos na região. 

Os projetos do Instituto Maria e João Aleixo incluem a UniPeriferias, que realiza atividades orientadas para formação, pesquisa e intervenção em territórios populares, a Editora Periferias, que faz as publicações, e o Seja Democracia, que promove formação política. 

A ideia da Revista Periferias surge nesse contexto, para difundir o conhecimento periférico no Brasil e no mundo. Em junho, por exemplo, haverá uma edição especial, feita em parceria com a escritora e editora sul-africana Zukiswa Wanner. A edição contará com escritores africanos, em parceria com o projeto suíço Litafrika. 

Logo depois, em setembro, será publicada a Periferias 9, com tema sobre acesso a direitos nas migrações Sul-Sul. Além de informar, a revista também busca pautar os debates sobre políticas públicas. “É um equívoco achar que as pessoas da periferia não lêem. Boa parte do nosso público é de periferia e favela, de pessoas que tiveram acesso à educação, acesso à ascensão social, à mobilidade social. Essas pessoas nos lêem”, ressalta Daniel.

Livro lançado pela Editora Periferias. Reprodução.

Além da Maré

As colaborações internacionais da Revista Periferias são feitas através de convites. Os editores identificam, no âmbito nacional e internacional, quem poderia participar da edição e fazem o convite. Há diversas contribuições da Palestina e de Rojava, uma região autônoma de origem curda localizada no noroeste da Síria, por exemplo.

Alguns textos são emblemáticos, diz Daniel Martins: 

“Eu me lembro, na terceira edição, em que publicamos um texto de um surfista, Gaza Surf Club. A história desse rapaz chamou muita atenção porque ele passou a produzir pranchas de surf dentro da faixa de Gaza. E isso foi algo revolucionário porque existe uma restrição na faixa de Gaza, em que proíbem a importação de fibra de vidro, alegando motivos de segurança. Com isso, é impossível importar, por exemplo, pranchas de surf. Então os palestinos foram proibidos de surfar naquela região porque não tinham prancha”. 

Daniel conheceu a história de Gaza Surf Club através da mídia. Ele procurou pelo surfista no Instagram e pediu uma colaboração para a revista. “Ele contou sua história em árabe, pelo próprio Instagram, e eu coloquei no Word e traduzi. Depois nós publicamos… Nós fazemos redes assim”, explica Daniel.

A Revista Periferias publica textos internacionais vindos em geral de países do Sul Global. Mas não se restringe a essa questão geográfica, porque entende que as periferias de várias cidades no Norte Global também enfrentam desafios. “Nós adotamos o conceito de periferias globais”, diz Daniel.

Revista Periferias
Fotógrafo Bira Carvalho. Reprodução.

Centro de pesquisa e formação

A Revista Periferias recebe apoio do MIDEQ, um centro de conhecimento sobre Migrações para o Desenvolvimento e Equidade, que agrega pesquisadores de 12 países diferentes do Sul Global, e cuja base é Universidade de Coventry, Inglaterra. A UniPeriferias integrou o MIDEQ em 2020, com pesquisa sobre o corredor migratório Haiti-Brasil, e incluiu seis pesquisadores com doutorado ou em doutoramento, todos haitianos que vivem no Brasil. 

Atualmente, a UniPeriferias está organizando o simpósio internacional para debater os resultados do MIDEQ Hub. Espera-se que mais de 100 pesquisadores, brasileiros e estrangeiros, participem do simpósio, que será realizado em setembro no Museu do Amanhã, Rio de Janeiro.

Além dessa pesquisa, a UniPeriferias também realiza um projeto sobre Educação Básica, desde 2018. O projeto é feito com professores da Grande Rio de Janeiro, sobretudo negros, que pesquisam e elaboram políticas educacionais antissexistas e antirracistas. A Editora Periferias já publicou três livros sobre esse projeto, que agora está ampliando o campo de atuação para mais dois estados brasileiros: Tocantins e Goiás. 

Sobre racismo e outras formas de opressão

A Revista Periferias opera a partir de um conjunto de enfrentamentos: a questão do racismo e da violência policial estruturada nas favelas e periferias, sobretudo no Rio de Janeiro, a  guerra às drogas, segurança pública, a questão migratória, tem também a questão palestina, a questão cigana, etc.

Na última edição, a revista publicou uma entrevista com a desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, que é crítica ao sistema prisional brasileiro: “A superlotação será resolvida com desencarceramento, que poderia ser iniciado pelos mais de 25% de pessoas em situação prisional que são presas de modo provisório”, defende Kenarik.

Também foi publicado o ensaio do fotógrafo Bira Carvalho, que faleceu em 2020. Bira formou-se pela Escola de Fotografia Popular Imagens do Povo, fundada pelo Observatório de Favelas, em 2004. “Não ignoramos os problemas que existem na periferia e favela. A gente apenas trata de uma forma diferente. Temos muita história pra contar. Temos capacidade de disseminação, através da editora, da revista…  e nós publicamos. Esse é o nosso objetivo”, finaliza Daniel Martins.

Quer apoiar essa causa?

Atualmente, a Revista Periferias recebe apoio da Fundação Tide Setubal e conta com parcerias do Instituto Unibanco, Fundação Heinrich Böll e AfrolitSans Frontieres, entre outras.  

Para saber mais, visite a Revista Periferias e siga as redes sociais da UniPeriferias no Facebook, Instagram e Twitter.  

Ou entre em contato pelo e-mail: revista@imja.org.br

    Arquitetura na Periferia
    Arquitetura na Periferia
    Precisando de: Doações Voluntários
    Localização
    Contato
    Apoio
    Coletivo Ponta de Lança
    Coletivo Ponta de Lança
    Precisando de: Doações
    Localização
    Contato
    Apoio
Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
Compartilhar:
Notícias relacionadas