‘Favelizando’ as Universidades: projeto criado no Complexo da Maré traz nova perspectiva para a comunidade

Repassando saberes, Laerte Breno e Daniele Oliveira estão transformando as vidas de jovens e adultos através do projeto UNIFAVELA, na favela Vila do João, localizada no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro.

05.10.21

Repassando saberes, Laerte Breno e Daniele Oliveira estão transformando as vidas de jovens e adultos através do projeto UNIFAVELA, na favela Vila do João, localizada no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Laerte tem 26 anos, é estudante de Letras pela UFRJ e nascido no Complexo de favaleas. É também pesquisador na área de Segurança Pública, Liderança comunitária e, hoje, presidente do UNIFAVELA – apesar dele considerar que o cargo de presidente é apenas uma formalidade.

Daniele também vive no Complexo da Maré, é estudante de História pela UERJ, estagiária em dupla jornada no Núcleo de Memórias e Identidades da Maré (Museu da Maré) e no Laboratório de Pesquisas e Práticas de Ensino da UERJ.

O caminho dos dois se cruzou quando se encontraram pela primeira vez em um curso pré-vestibular, oferecido pelo Redes da Maré. Anos depois, dentro do UNIFAVELA, ambos compartilham o conhecimento que estão adquirindo na universidade e dão aulas de Língua Portuguesa e História para outros adolescentes da favela. 

Para entender um pouco mais sobre como funciona o projeto, conversei com Laerte:

 

Neuza Nascimento: Como o projeto começou?

Laerte: O projeto começou em 2018, partiu de uma iniciativa minha de ajudar uma estudante. Como eu ingressei na universidade através de um pré-vestibular aqui da Maré, eu sempre quis dar um retorno pra favela onde eu moro. Uso o que adquiro na academia para tirar as dúvidas daqueles que estão trilhando o mesmo caminho que trilhei um dia. Essa estudante estava se preparando na Lona Cultural Herbert Vianna, localizada na Nova Holanda, favela vizinha à Vila do João, quando dei uma passada lá, por acaso. Como eu não tinha nenhum compromisso, dei uma ajuda a ela e pedi que voltasse no dia seguinte naquele mesmo espaço que eu ia chamar uma amiga minha, Daniele, pra dar aula junto comigo. Ela chamou mais cinco colegas. Eu fiquei com a área de linguagem e a Dani, que já havia ingressado na faculdade também, ficou com as aulas de História. Um dia fizemos uma longa aula de História e Língua Portuguesa, voltadas para o ENEM, e o retorno foi sensacional, eles adoraram. A coisa começou a se repetir e os alunos, que haviam nos transformado em educadores, começaram a pedir mais voluntários e eu comecei a procurar. Fui na universidade, acionei meus contatos e o número da equipe foi crescendo. Isso foi no segundo semestre de 2018, nós ainda não éramos um pré-vestibular, somente um apoio. Chamávamos de monitoria. Mas pouco tempo depois tivemos que sair do espaço, o número de alunos foi crescendo e o local já não comportava as aulas. Foi nesse momento que decidi parar, mas então a Dani chamou outras pessoas, teve uma ação conjunta, um aluno nos emprestou a laje e lá recomeçamos. Se não fosse por ela, Daniele, eu teria parado no meio do caminho. Foi e é um trabalho de equipe.

Aqui na Maré tem outros dois pré–vestibulares, o nosso é o terceiro. Nessas duas iniciativas acontecia uma espécie de monitoria também, mas não era estruturado, eles também estavam começando e nós decidimos unificar tudo.

Neuza Nascimento: Qual é o propósito do UNIFAVELA?

Laerte: O UNIFAVELA é um projeto sócio educativo. Trabalhamos a educação como nosso movimento principal, por isso um dos nossos lemas é “favelizar” espaços de produção de conhecimentos. Entendemos que é importantíssimo colocar em debate a ideia da produção favelada. Por isso, quando recebemos os alunos, falamos da importância de conhecer o território da Maré como algo importante, não só pela produção cultural mas também pelo engajamento em diversas situações.

Neuza Nascimento: Qual o objetivo do projeto?

Laerte: Nosso objetivo é colocar jovens e adultos do Complexo da Maré dentro das universidades públicas ou capacitá-los para o ENEM. Mas não apenas isso. Junto a isso, realizamos ações fora da sala de aula. Como exemplo, no dia da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha, comemorado no dia 25 de julho, vamos distribuir 60 livros “Quarto de Despejo”, de Maria Carolina de Jesus, para as mulheres aqui da Maré. Os livros nós conseguimos a partir de uma postagem no Twitter onde pedíamos cinco livros para dar aos estudantes bolsistas, só que a repercussão foi muito grande e conseguimos uma quantidade maior, então resolvemos dar para as mulheres aqui da Maré. 

Neuza Nascimento: O UNIFAVELA realiza outras atividades, além do pré-vestibular?

Laerte: Estamos pensando em iniciar uma turma de alfabetização para crianças e, como eu disse, nós realizamos ações fora da sala de aula, e uma delas é o “BrinqueLeitura”. Dentro dessa atividade conseguimos, no ano passado, distribuir 100 bonecas negras e a mesma quantidade de livros infantis, todos com temática racial. Foram distribuídos não só para as crianças negras, mas também para as brancas, para que todas entendam a diversidade local e também a nível de Brasil. E temos o “Maré de Natal” que entrega Cestas Básicas no mês de dezembro para os moradores em situação de vulnerabilidade financeira, mas agora existem outros projetos na Maré fazendo esse trabalho por conta da pandemia e por conta disso resolvemos focar mais no pré-vestibular no ano passado.

Neuza Nascimento: Quantos beneficiários estão inscritos no projeto?

Laerte: São 150 inscritos no total, mas neste ano de 2021 resolvemos começar somente com 30 alunos. Entendemos, por questão da pandemia e por outros fatores, que ficaria menos complicado para todos, alunos e educadores. A faixa etária dos beneficiários está entre 18 a 42 anos.

Neuza Nascimento:- Quais os critérios para entrada no projeto?

Laerte: No início pensamos em aplicar um formulário e fazer uma análise sócio econômica junto aos candidatos, mas depois decidimos que não fazia sentido algum. Todos moram no Complexo da Maré e, embora eu tenha estudante que mora numa casa de aluguel e outro que mora numa casa própria, a casa própria pode ser um cômodo só, onde moram cinco pessoas e o que mora de aluguel pode ser uma casa de dois cômodos, mas só que ele tem dificuldade de manter esse aluguel; pensando nisso o formulário perdeu o sentido pra nós. A distribuição das vagas se dá através de sorteio separando em porcentagem pela identificação racial. Mais de 50% delas é destinada para pessoas que se autodeclaram pretas, pardas ou indígenas. O restante fica para as pessoas que se autodeclaram brancas ou amarelas.

Neuza Nascimento: Como é formada a equipe?

Laerte: O projeto está dividido em cinco setores e somos em média, 40 voluntários. Temos entre 18 e 20 educadores, são dois para cada disciplina. Ano passado fizemos algo inédito: passamos a ser o único pré-vestibular da Maré a atuar em dois turnos dando opção de horário para o estudante. Mas não tivemos tempo de avaliar o impacto, porque pouco tempo depois veio a pandemia e todos foram alocados para o turno da noite. O Setor Pedagógico do projeto é composto por mais ou menos cinco pessoas; na Comunicação Institucional são quatro e os demais ficam alocados nos setores restantes, que são Financeiro, Desenvolvimento Institucional e Jurídico. 

Neuza Nascimento: Como o projeto se mantém?

Laerte: Nós não temos nenhum apoio financeiro no momento. Em 2018 usamos o “boom” que o projeto teve, por conta do 100% de aprovação dos alunos participantes na época em que as aulas aconteciam a laje. Aproveitamos o engajamento nas redes sociais e fizemos uma vaquinha online (crowdfunding) e conseguimos uma boa entrada de recursos. Esse dinheiro ficou guardado até hoje e só agora começamos a usar. Nós sempre usamos espaços que são cedidos por outros. Da laje fomos para o Instituto Vida Real, na favela Nova Holanda, também no Complexo da Maré, onde nos cederam espaço de 2019 a início de 2020, quando tivemos que sair. Foi aí que decidimos andar com nossas próprias pernas: elaboramos um estatuto para nossa formalização, compramos uma estante para montar a biblioteca, investimos em frete para transportar móveis doados como mesa de escritório e cadeiras de estudantes e assumimos o aluguel de uma sala onde as aulas passarão a acontecer. Tudo foi tirado do dinheiro da vaquinha de 2018.

Neuza Nascimento: Quais as vitórias do projeto?

Laercio: Temos bastante, graças a Deus. Hoje temos um espaço próprio, é uma sala de aula alugada, mas enquanto temos condições de pagar, é nossa. Mesmo com a pandemia tivemos alunos aprovados em 2020 e agora em 2021. Conseguimos cinco tablets para os estudantes, desses cinco, dois conseguiram aprovação. Somos um projeto de extensão da UFRJ, ganhamos Menção Honrosa dessa mesma instituição e isso foi maravilhoso. Não gostamos muito de nos prender a 2018 porque já passou mas tivemos 100% de aprovação, e disso não podemos esquecer. Desde o início até hoje tivemos uma média de 25 alunos aprovados. Outra vitória importante é a Bolsa Auxílio.

Neuza Nascimento: Você pode me explicar como funciona a Bolsa, por favor?

Laerte: A Bolsa Auxílio, no valor de 200,00 mensais (duzentos reais), foi disponibilizada para cinco alunos. Esse dinheiro foi debitado de parte da arrecadação feita em 2018 com a campanha. Conseguimos compor as Bolsas de junho, julho e agosto; as de setembro, outubro e novembro, serão financiadas por pessoas parceiras que decidiram apoiar a campanha apadrinhando os alunos. Essa Bolsa ajudou muito na questão da evasão, não vai salvar a vida desses alunos, mas faz uma diferença. 

Neuza Nascimento: Qual foi o maior desafio do projeto até hoje?

Laerte: O maior desafio do projeto é e sempre foi evitar a evasão dos alunos. Entendemos que não podemos evitar a evasão e, na minha opinião, nenhum projeto consegue evitar esse fenômeno. Quem poderia fazer isso está trancado numa sala, de terno e gravata, no ar condicionado. Não tem como. O que podemos e fazemos é driblar a situação, por exemplo, criamos duas turmas para dar a opção de horários diferentes e viemos para uma área da Maré onde não tem pré-vestibulares, que é a Vila do João. Estamos sempre tentando criar mecanismos e formas para amenizar a saída precoce do aluno. E, o meu maior desafio é elaborar a gestão de um projeto dentro do Complexo da Maré, é pensar como estruturar um projeto dentro da favela. Nós lidamos com situações aqui que infelizmente fogem ao nosso controle, isso é outro desafio. E é difícil pensar soluções, amenizar é o que conseguimos. Por exemplo, uma família com fome, podemos entregar uma Cesta Básica, mas semana que vem, ela vai continuar com fome.

Neuza Nascimento: Com a chegada da pandemia, as atividades continuaram?

Laerte: Em 2020, o projeto continuou somente de forma remota. Todos achávamos que toda aquela situação ia durar somente algumas semanas. Passamos por um momento muito difícil, a evasão foi muito grande e nós ficamos com cinco estudantes. Foi bem complicado e nós quase paramos, não estávamos vendo sentido em continuar. O problema não foi o EAD. O EAD é ótimo, o problema é a exclusão tecnológica das pessoas. Essa modalidade tem tudo pra dar certo, ela pode ajudar o estudante e até a família dele, mas se esse aluno não tem internet, um tablet ou um computador e se o professor não recebe um preparo nesse sentido, fica quase inviável. As pessoas demonizam o EAD, mas ele é um recurso pedagógico, e todo recurso pedagógico é válido se ele for estudado, elaborado e realizado um mapeamento. Essa prática de Ensino a Distância é muito antiga, pensar o livro com esse recurso é interessantíssimo.

Neuza Nascimento: Quais são as necessidades do projeto? 

Laerte: Hoje temos espaço, mas o aluguel tem que ser mantido. O recurso financeiro é importantíssimo por várias questões, como por exemplo, remuneração ou ajuda de custo para os educadores que poderiam, com essa verba custear transporte, um lanche, uma refeição ou mesmo suprir uma outras necessidades. Por outro lado, o recurso financeiro não é nossa única necessidade. Os livros e papéis que estão na estante foram doados, então nem sempre recursos financeiros são prioridade e as doações nos ajudam muito. Quando começarmos a turma de alfabetização para as crianças, queremos incluir atividades lúdico-pedagógicas e como elas adoram pintar, desenhar, recortar, vamos precisar muitos de materiais para serem usados durante as aulas.  Outra necessidade são produtos de higiene e limpeza para que possamos manter a integridade do espaço.

Neuza Nascimento: Alguma ação futura?

Laerte: Vamos realizar um Simulado em novembro; pretendemos, a médio prazo, realizar uma ação para arrecadar livros e aumentar o acervo da biblioteca, que ainda é muito pequeno. Com a intenção de homenagear a escritora Maria Carolina de Jesus, pretendemos dar o nome dela a todas as atividades do projeto durante o ano de 2021, e elaborar uma campanha de arrecadação de fundos para que os voluntários passem a ter uma ajuda de custo ou salário. 

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Para apoiar, entre em contato: contato@unifavela.com.br

 

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Neuza Nascimento
Após ser empregada doméstica por mais de 40 anos, Neuza fundou e dirigiu a ONG CIACAC durante 15 anos. Hoje é estudante de Jornalismo e trabalha com escrita criativa, pesquisa de campo e transcrições. No Lupa do Bem, é responsável por trazer reflexões e histórias de organizações de diferentes partes do Brasil para a "Coluna da Neuza".
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