Mulheres de Pedra: saiba mais sobre o projeto social que conquistou prêmio cinematográfico e foi até o Festival de Rotterdam
As Mulheres da Pedra é um projeto social que, através da arte coletiva, mostra o potencial das mulheres para o mundo. Conheça esse projeto premiado!
O projeto “Mulheres de Pedra” ficou conhecido quando recebeu, em 2015, o prêmio cinematográfico “72 Horas”, pela produção do curta “Elekô”.
Sua sede pode ser encontrada em uma rua tranquila do bairro Pedra de Guaratiba, Zona Norte do Rio de Janeiro. Trata-se de uma casa aconchegante, com portão aberto. A construção possui 100 anos de existência, com diversas lembranças guardadas nas paredes. São memórias de resistência, luta e coletividade de mulheres negras.
Na entrevista abaixo, a fundadora do projeto, Leila de Sousa Netto, conta um pouco mais sobre o surgimento e toda a trajetória do “Mulheres de Pedra”, que chegou até mesmo em outros países.
Neuza Nascimento: Como nasceu o projeto Mulheres de Pedra?
Leila de Sousa Netto: Para contar a história completa, eu levaria dias. Então, vou tentar resumir, da melhor maneira possível. Coordeno este projeto há 21 anos e viemos de Pedra de Guaratiba. A iniciativa nasceu, principalmente, através da vontade de Dora Romana, grande artista plástica já falecida, que residia na mesma região. Na época, ela foi convidada a fazer uma exposição na nossa egrégora, que é a nossa casa. E lá, teve a ideia de reunir um grupo de mulheres para fazerem fuxico, bordado e crochê em pedaços de pano. Assim, foi criada a primeira colcha de retalhos, nosso grande carro chefe, que nos acompanha até hoje.
Neuza Nascimento: Como é confeccionada essa colcha?
Leila de Sousa Netto: Ela é construída por 15 mulheres, em um tecido 30X40. Nós criamos uma colcha de casal que até pode ser usada na cama, mas a verdadeira finalidade é a utilização como painel decorativo na parede. Essas colchas representam o fazer coletivo, colaborativo e cooperativo. No momento da confecção, todas despem-se de suas vaidades, os egos são colocados de lado e cada uma delas passa a valorizar o coletivo, sem aquele “o meu é melhor”. Algum deles pode até ser, de fato, melhor, mas quando juntamos cada pedaço produzido e ligamos tudo através da costura, trata-se do coletivo. Surge toda uma grandeza da realização de algo em conjunto, que é a melhor forma de trabalhar do mundo. Jesus já falava da cooperação e da solidariedade, e é isso que sabemos fazer, é assim que fazemos: de forma cooperativa e humana. Temos 12 colchas de retalhos temáticas e sem temas, que se transformam em grandes painéis criativos, contando nossa trajetória do início do projeto até os dias de hoje.
Neuza Nascimento: Qual o destino dessas Colchas?
Leila de Sousa Netto: As colchas já viajaram pelo Brasil e exterior, como exposições. Tivemos uma caminhada de quatro anos a Paris, de 2010 a 2014. Andávamos com essas colchas, mostrando o potencial de cada uma, pois elas também possuem como objetivo mostrar o que cada mulher tem de melhor dentro de si. Hoje, temos muitas mulheres que se transformaram em verdadeiras artistas, começando com as colchas de retalho.
Neuza Nascimento: Quem são as “Mulheres de Pedra” e como surgiu esse nome?
Leila de Sousa Netto: Somos um coletivo de mulheres com o objetivo de valorizar o protagonismo da mulher negra na construção de um outro mundo, no qual as relações são estabelecidas através da arte, da educação, da economia solidária e da diversidade cultural. O nome surgiu numa coletiva de trabalho, protagonizada por mulheres negras, feministas e que trabalham com gênero, raça, etnia e com todas as questões que poderiam ser perturbantes para as mesmas. Somos Mulheres de Pedra.
Neuza Nascimento: Qual o propósito do projeto?
Leila de Sousa Netto: Nosso propósito é fazer o bem coletivo, solidário, cooperativo e de forma justa.
Neuza Nascimento: Quais são as atividades realizadas pelo projeto?
Leila Sousa Netto: Realizamos Rodas de Conversa com o tema Justiça Restaurativa, e trata-se de uma formação voltada para isso. É sobre a justiça de restauração, porque já chega da punitiva, já estamos cheios! Nós vemos nossas meninas, meninos, mulheres e homens negros morrendo a cada dia. Então, trabalhamos com a justiça restaurativa, através de rodas e formações, com pessoas extremamente preparadas. E sabemos que esse tipo de justiça já está dentro da normalidade, dentro dos fóruns. Nas penitenciárias, isso já é trabalhado também, graças a Deus. Mas ainda é necessário ser implantado dentro das escolas, dentro de grupos, em todos os lugares. É um trabalho lindo, divino e potente, em que nós enxergamos o mundo de outra forma, com um olhar restaurativo. Assim que passei por essa formação, fui restaurada como ser humano. É uma forma de cuidar de conflitos que existem dentro da “justiça comum”, através de mediações acolhedoras, em que não há punição e onde serão ouvidos tanto o réu, quanto a vítima. Não vai simplesmente punir, afinal, o réu punido também é uma vítima. A justiça restaurativa olha para o ser humano através do contexto dos conflitos, que, desta forma, são amenizados, trabalhados e ouvidos. A escuta é um fator fundamental.
Neuza Nascimento: Existem outras atividades?
Leila de Sousa Netto: Sim, realizamos a Festa da Primavera há 10 anos, com música, dança, teatro, cinema, rodas de conversa e oficinas pensadas na hora. Além disso, temos gastronomia e cortejo. Outra atividade é a festa “Vivas”, que também é realizada anualmente. Nela, existe a “Vivências e Interações de Mulheres Afro Brasileiras”, uma atividade que ocorre há sete anos, sempre em 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. O evento dura um dia inteiro e convidamos mulheres negras, matriarcas como eu, para realizarmos homenagens. É um dia repleto de Jongo, Maracatu, comidas, e conversas com nossas homenageadas e com convidados. Já recebemos a escritora Conceição Evaristo, poetisa e romancista negra, grande autora brasileira que já se destacou ao redor do mundo. Acredito que todos conheçam o livro Olhos D’Água, de sua autoria. Além disso, homenageamos Isaura de Assis que, depois de Mercedes Batista, é a maior dançarina afro-brasileira no Rio de Janeiro. Eu e minhas filhas tivemos a honra de fazer aulas com ela, e a consideramos como uma tia, uma mãe, um ícone, um símbolo. Também realizamos uma homenagem para a Dona Tuca, de 82 anos, moradora da Cidade de Deus. Ela é poetisa, artista plástica, musicista, compositora de Reggae e, além de tudo, dança. Possui livros lançados e quadros pintados pela própria. E, por fim, temos rodas de conversa durante o ano todo, trabalhando com Justiça Restaurativa e Economia Solidária.
Neuza Nascimento: Existe uma equipe? E, se existe, é remunerada?
Leila de Sousa Netto: Existe um coletivo de mulheres. Quando temos recursos, há remuneração. Quando não temos, trabalhamos de forma solidária e colaborativa. Até hoje, a maioria dos recursos veio de nossa participação em editais de projetos e através de doações espontâneas de cada uma de nós.
Neuza Nascimento: Como vocês conseguem manter o projeto em movimento?
Leila de Sousa Netto: O fato de termos a sede própria, uma casa nossa, das Mulheres de Pedra, já ajuda muito. É um patrimônio em que mantemos toda a nossa identidade e que vai ser memorizado. Hoje, em vida, já estamos doando para a comunidade. E temos o objetivo de transformar a sede em um museu, para contar toda a trajetória do Mulheres de Pedra. Queremos deixar isso como uma memória, como um patrimônio mesmo. E nós podemos, porque temos essa força e capacidade.
Neuza Nascimento: Quantas mulheres são beneficiárias diretas?
Leila de Sousa Netto: Em torno de 30 mulheres.
Neuza Nascimento: Como é o processo para participar da casa?
Leila de Sousa Netto: Basta ter vontade de estar ali. Se possuir interesse, participar dos nossos encontros, dos afazeres e se sentir uma mulher de pedra, já é uma.
Neuza Nascimento: Você conta com uma equipe?
Leila de Souza Netto: Existe uma coletiva de trabalho formada por mulheres. É um grupo em que todas mandam e fazem o que é necessário, no momento que precisa ser feito. A cada projeto, definimos juntas as equipes e o que cada uma vai fazer. A partir do que precisa ser desenvolvido, criamos os grupos, a decoração, a produção, a cozinha, as rodas de conversas. Mas sempre com a participação de todas, a decisão nunca parte de uma só. Quando o projeto acaba, as equipes são desfeitas até outro acontecer.
Neuza Nascimento: O que você considera como uma vitória na sua trajetória como mulher de pedra?
Leila de Sousa Netto: Vitória é tudo aquilo que me permitiu chegar até aqui. Estamos com quase 22 anos de Mulheres de Pedra. Tivemos muita música e muita arte, realizadas por grandes nomes. Conseguimos manter eventos mensais de forma artística, cultural e lúdica. Somos conhecidas aqui, em Pedra, e no Brasil inteiro, além de outros países. Outra conquista foi participar, em 2015, de um festival de Curtas, o “72 Horas”.
Um coletivo do Mulheres de Pedra, em sua maioria jovens negras, decidiu fazer a inscrição nesse festival. Era preciso gravar 72 horas de vídeo, além de realizar a edição e a trilha sonora, para um curta com duração de seis minutos. Foram apenas dois encontros para filmagens, mas todas nós sempre acreditamos muito. Minha filha, Olívia, que também é quem ajuda a sustentar o espaço e o projeto, pediu ajuda no Facebook para ver se alguém tinha uma câmera e um claquete para emprestar. Na época, ela morava em São Cristóvão e colocou seu apartamento à nossa disposição, porque a filmagem tinha que ser realizada na Praça Mauá. E, assim, produzimos o Elekô.
Na premiação, todo mundo estava na expectativa, quando finalmente anunciaram: “1° lugar para Mulheres de Pedra! Elekô!”. A partir deste dia, a nossa vida mudou. O curta foi assistido por muitas pessoas, o que acabou nos levando, inclusive, para outros países. Como consequência do prêmio, também participamos do festival mais famoso do mundo, o Festival de Rotterdam. As Mulheres de Pedra foram para Rotterdam!
Neuza Nascimento: A casa tem apoiadores?
Leila de Sousa Netto: Sim, são todos aqueles que frequentam a casa: a comunidade, os vizinhos, a família e os amigos. Esses são os verdadeiros apoiadores.
Neuza Nascimento: Como é o envolvimento do bairro com o projeto?
Leila de Sousa Netto: Antes, havia pouco envolvimento. Dificilmente entravam e faziam uso do espaço. Mas, atualmente, com tantos eventos e atividades sendo realizadas, as pessoas vêm, abrem o portão e participam de tudo, de maneira bastante unida. Existem escolas que nos apoiam e instituições locais que nos conhecem e nos buscam. Só de falar das escolas, já me sinto feliz, porque é sobre a futura geração apropriando-se desse espaço, a partir de agora.
Neuza Nascimento: Quais são os seus maiores desafios?
Leila de Sousa Netto: O maior desafio sempre foi transformar essa casa num espaço, num território, apesar de já ser, de certa forma. Mas a ideia é torná-lo cada vez mais conhecido, para que todos se apropriem dele e entendam esse espaço como um território de mulheres negras. Esse é um grande desafio dentro do projeto. Nós ainda vivemos em uma sociedade extremamente racista, patriarcal, preconceituosa e problemática. Temos vizinhos maravilhosos, mas também existem alguns bastante racistas e preconceituosos. Por exemplo, quando realizamos um evento de Jongo: para eles, isso é macumba, porque não sabem sobre nossa cultura e nossos costumes, como mulheres negras resistentes.
Vencer essa barreira é um grande obstáculo que nós encontramos aqui, mas temos conseguido. Hoje, graças a Deus, através de um novo olhar sobre o que fazemos, as coisas estão mudando.
Neuza Nascimento: A casa foi fechada durante a Pandemia? O que aconteceu?
Leila de Sousa Netto: Em fevereiro e março de 2020, fechamos tudo. Mas, em torno de julho e agosto, a situação ficou muito difícil para todo mundo. E foi pior ainda para as mulheres que não tinham emprego. Então, nessa época, Lívia Vidal realizou uma Benfeitoria para arrecadar recursos. Com isso, conseguimos contemplar 25 mulheres da coletiva, com R$300,00 cada, durante três meses. Em seguida, a Telecine entrou em contato conosco e ofereceu 400 Cestas Básicas.
Mas isso, na verdade, gerou um medo muito grande. Fiquei pensando sobre como iria realizar as doações em plena Pandemia e como iria formar equipes, afinal, só conseguiríamos realizar o trabalho assim. E, de fato, montamos grupos com as Mulheres de Pedra.
Mas, por outro lado, decidimos que as cestas não seriam só para Pedra de Guaratiba. Então, conseguimos um grupo de Campo Grande, Zona Oeste do Rio, e no Quilombo Camorim. Essa foi nossa primeira distribuição de cestas básicas. No mês seguinte, mandaram mais 400, divididas entre alimentação, higiene e limpeza. E continuaram enviando, até novembro de 2020.
Neuza Nascimento: Quais são as necessidades do projeto?
Leila de Sousa Netto: Como queremos transformar a casa em um museu, precisamos de recursos financeiros para pagar os custos do processo e da documentação. Ou, talvez, um cartório pudesse nos ajudar. Também precisamos de fundos para realizar a manutenção da casa, pois ela já soma 100 anos. Com isso, sempre ocorre algo: telhas quebrando, paredes rachando, goteiras pingando. Então, se alguma loja de material pudesse nos auxiliar, seria muito válido. Por fim, precisamos de ajuda para manter as despesas fixas, como luz, telefone, materiais de higiene e limpeza.
Neuza Nascimento: Gostaria de acrescentar algo?
Leila de Sousa Netto: Não, acho que consegui me expressar de uma maneira bem bacana, contando a minha trajetória. Sempre podemos esquecer de algo, afinal, são 20 anos, mas as coisas mais importantes foram ditas.
Caso tenha interesse em ajudar com materiais de construção ou queira apoiar financeiramente o processo de transformação da Casa das Mulheres de Pedra em museu, por favor, entre em contato.
Telefone: (21) 9 8640-8468
E-mail: leilamulheresdepedra@gmail.com
Pix: leilamulheresdepedradepedra@gmail.com