“O mar não é um espaço vazio”: Ecomaretório alerta sobre o impacto de usinas de energia eólica offshore

ONG atua com comunidades tradicionais do Ceará pelo direito à consulta prévia sobre os empreendimentos dentro do mar

29.08.24

O avanço de usinas de energia eólica no mar, chamadas de offshore, tem mobilizado a população no litoral do Ceará pela defesa de seus territórios. O coletivo Ecomaretório, formado por comunidades de moradores de Icaraí de Amontada, Barra de Moitas e Praia da Baleia, vem denunciando que as comunidades não estão sendo consultadas sobre os empreendimentos, violando os direitos das populações tradicionais.

“Os projetos já estão em trâmite no Ibama, mas ainda não fomos consultados, nem pelo Ibama, responsável pelo licenciamento, nem por outros órgãos. O máximo que conseguimos foi um espaço de fala em uma reunião. Então os projetos já estão infringindo a lei, porque a consulta deve ser efetuada antes de qualquer decisão administrativa, antes mesmo de abrir um processo de licenciamento”, diz a bióloga e representante de Icaraí de Amontada, Alanna Carneiro.

Para o presidente da Associação Barra de Moitas, Mateus Souza, o projeto de usinas offshore preocupa: “Somos uma área turística e a poluição visual pode afetar nossa economia. Para os pescadores também seria um grande problema, porque a área de navegação e de pesca deve sofrer limitações. Além disso, a luz e o barulho das torres incomodam os peixes. E se houver algum vazamento? Nós sabemos que as usinas usam motores a óleo… se vazar, pode infectar os peixes do mar e acabar indo para o rio, para dentro do mangue, quando a maré encher.”

Usinas offshore

Até o início deste ano, o Ibama registrou 96 processos de licenciamento ambiental de eólicas offshore no Brasil. Desses, 25 são no Ceará. Ainda não há no Brasil um marco regulatório que regulamente as offshore no país. Em junho, porém, o governo do estado anunciou que assinou um memorando de entendimento (MoU, na sigla em inglês) com a Neoenergia para iniciar os estudos sobre projetos de energia eólica offshore no litoral cearense

O presidente da Associação da Praia da Baleia, Raimundo Braga, comenta que a comunidade tem visto uma série de grandes embarcações e sobrevoos de balão no mar da praia da Baleia, sugerindo que os estudos para implantação dos projetos já podem estar em andamento. Alanna Carneiro, que também é presidente do Ecomaretório, alerta que isso fere a Convenção 169 da OIT, assinada pelo Brasil. 

A Convenção prevê que povos ou comunidades tradicionais devem ser consultados antes do Estado aprovar qualquer empreendimento que afete essas populações. O reconhecimento de um povo tradicional é autodeclaratório e está ligado a modos de vida diferenciados, com forte conexão com o território e os recursos naturais para sua reprodução enquanto grupo, como está previsto pelo Decreto n. 6.040/2007. Segundo Alanna, as demandas dessas populações não estão sendo consideradas.

“Por enquanto, estamos sofrendo ameaças de projetos no mar, mas no litoral de Amontada já há aerogeradores em terra. Desde o período da implantação, que começou por volta de 2009, em geral, a consulta livre e pré-informada não vem sendo estabelecida, e quando acontece, não tem sido efetivada. O que tem acontecido são apenas as audiências públicas, mas elas ocorrem normalmente na sede do município, bem distante dos distritos e não é providenciado o deslocamento da comunidade. Então, normalmente, as decisões são tomadas apenas entre o empreendedor e os órgãos fiscalizadores”, afirma a bióloga. 

Créditos da imagem: Alanna Carneiro.

Ecomaretório

Alanna vem de uma família nativa que mantém a tradição da pesca de currais. Ela explica que o mar organiza toda a vida social dessas comunidades, desde a geração de renda até a espiritualidade e o brincar das crianças. “Nossa diversidade de peixe e de frutos do mar tem um valor econômico que supera qualquer outra região do país. Há conflitos, inclusive, por conta da lagosta. O polo de pesca de lagosta no Ceará, por exemplo, é cobiçado pela Espanha.”

“Além da pesca, o mar é muito utilizado pelas mulheres, que são marisqueiras e coletoras de alga. A população também utiliza o mar como um espaço de lazer e de culto espiritual. Nós fazemos as procissões e os cortejos dentro do mar, as festas da Nossa Senhora do Navegante, de Iemanjá, de São Pedro. Então é um espaço de bem viver”, diz Alanna.

“Esse território marinho, no entanto, não tem sido considerado para consulta, nem pelas políticas públicas, nem pelos empreendedores que visualizam o mar como um espaço que não está habitado, não está ocupado. E isso acaba trazendo uma questão da violação dos nossos direitos como comunidades tradicionais. São tentativas de negligenciar e consultar os povos”, aponta.

Consulta prévia, livre e informada

O coletivo Ecomaretório foi formado em 2017 com objetivo de oferecer mecanismos de fortalecimento territorial dessas populações. Para isso, trabalha a importância das comunidades adotarem o protocolo de consulta prévia, livre e informada. O documento é elaborado pela própria comunidade e tem finalidades legais pela defesa dos seus territórios. 

Por meio do protocolo, as comunidades formalizam a maneira como devem ser consultadas em casos de empreendimentos e de medidas legislativas e administrativas que interfiram de forma direta ou indireta nas suas vidas. “Mas a consulta prévia sempre deve ser feita, independente das comunidades terem ou não os protocolos”, indica Alanna. 

Os protocolos também incluem a forma como o mar deve ser utilizado. “O maretório é o território dentro do mar ocupado pelas populações. Isso é comprovado com os registros históricos, os desembarques pesqueiros, com todos os pontos de pesca que os pescadores artesanais conhecem muito bem. Esses pontos são passados de geração em geração, tem a pedra da Uruanã, tem os cabeços”, lembra a bióloga.

Créditos da imagem: Alanna Carneiro.

Energia eólica

O primeiro leilão de energia eólica no Brasil foi realizado em 2009, impulsionando essa indústria no Nordeste. Em 2023, a região foi responsável por 92% de toda energia eólica produzida no país. Com forte apelo pela transição energética, as empresas apostam no discurso da energia limpa e da geração de emprego e desenvolvimento para promover as usinas. As populações afetadas, no entanto, se queixam de usufruir apenas dos impactos negativos. 

“A partir do momento que começaram a implantar as usinas próximas da Baleia, em Mundaú e em Caetano de Amontada, aumentou o fluxo de pessoas na nossa comunidade. A procura por casa para alugar cresceu. Isso também movimentou a prostituição e o uso de drogas. A criminalidade aumentou a olho nu”, diz Raimundo Braga, presidente da Associação da Praia da Baleia.

“Nossa fonte de renda é a pesca e o turismo. Nós somos pescadores artesanais, usamos barco à vela e não dá para seguir um caminho reto no mar. Sempre vamos pro mar fazendo cruzada, depende muito do vento. E se o mar estiver cheio de eólica, como vamos fazer essa cruzada no meio do mar, sem poder se defender? A energia no mar não é uma fonte de renda pra gente, não temos nem pessoal capacitado para trabalhar nas usinas offshore”, afirma Edivaldo Souza, vice-presidente da Associação de Barra de Moitas. 

“As eólicas estão por todo canto, nas dunas, no sertão, na serra, nas praias. Os parques chegam com a promessa de energia barata para o povo, mas essa promessa nunca se concretiza. Nós continuamos consumindo energia cara. Em alguns lugares, gerou um pouco de emprego, em outros, nenhum. No mar, a expectativa é que vão produzir dez vezes mais, porque venta muito… Para onde vai essa energia? E pra gente, vai ficar o quê? Só os impactos negativos?”, questiona Matheus Souza, presidente da Associação de Barra de Moitas.

Para a presidente do Ecomaretório, esse modelo de desenvolvimento não pauta os direitos humanos. “Os povos e comunidades tradicionais não estão sendo inseridos. As decisões são tomadas de cima para baixo. Normalmente, não sabemos nem para quais empresas nosso território está sendo vendido e explorado. É preocupante, porque as violações acontecem e não conseguimos sequer identificar quem está fazendo isso. Então é preciso fazer a consulta com as comunidades que vivem e dependem desse ecossistema”, reforça Alanna.  

Créditos da imagem: Alanna Carneiro.

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O coletivo Ecomaretório é constituído como ONG e depende fortemente de doações para desenvolver suas ações. Além de contribuir com o fortalecimento territorial, a ONG também faz o resgate, reabilitação e monitoramento de animais marinhos. Para contribuir, clique aqui. Para saber mais, visite o site ou siga as redes sociais Facebook e Instagram.

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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